domingo, 3 de outubro de 2010

Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum

Os discípulos pedem a Jesus que lhes aumente a fé. É um pedido normal, consciente, de quem não só se sabe pecador mas também muito frágil, muito incipiente no conhecimento da revelação e na fidelidade que lhe deve ser consequente. Eles sabem muito pouco das condições que permitem o acesso ao Reino de que Jesus fala e sabem também das poucas condições que têm, ou não têm, de como não estão à altura das exigências que pressupõem vislumbrar. Neste pedido percebe-se, e dá se nos a perceber a consciência que os Apóstolos tinham que não se tratava de uma ideologia a que tinham que aderir, mas que era um processo de vida, era uma conversão que implicava muito mais aplicação da sua parte e um algo mais que não estava nas suas mãos.
A resposta de Jesus ao pedido dos Apóstolos é de alguma forma desconcertante, pois constrói-se numa lógica que assenta num conjunto de condições que são estranhas a este mundo. Assim, não é normal que se mova uma árvore enraizada no seu terreno e se consiga lançá-la ao mar e aí sobreviva plantada. E mais ainda, que tudo isto se faça com algo tão pequeno, tão minúsculo, comparável a uma semente de mostarda. Há uma desproporção abismal entre a fonte, o motor da acção, e os resultados da mesma, há um contracenso total entre os meios e os fins.
Contudo, esta disparidade serve apenas para mostrar como a fé funciona, como ela se desenquadra de tudo o que pode ser concebido mentalmente, de acordo com as leis do pensamento humano. Há razões que a razão desconhece e no caso da fé há processos e meios cujos fins ultrapassam tudo o que é racionalmente concebível, previsível, calculável.
Perante esta realidade a atitude a tomar é a da atenção solícita, a da disponibilidade total a um dom que nos escapa da mão e do controlo mas que não podemos deixar de procurar e de querer conquistar e possuir. E é tendo em perspectiva esta situação, este processo, que Jesus continua a parábola narrando um procedimento que choca com a nossa mentalidade social, que podemos considerar como uma violação e um abuso de autoridade e poder.
Assim, Jesus narra que depois de um dia de trabalho, o servo que chega a casa vê-se ainda confrontado com o pedido do senhor e patrão para que lhe prepare a comida e o sirva, podendo só depois disso alimentar-se na sua fraqueza. É um escravo que passou o dia a guardar os rebanhos e que no momento do descanso se vê ainda solicitado com este extra de trabalho do serviço à mesa.
Para nós hoje, e face à organização social e laboral, aos direitos dos trabalhadores, é algo que nos choca, mas tendo em conta a cultura e o tempo histórico em que a parábola é contada estamos perante algo que é uma revolução, algo muito próximo da parábola do filho pródigo. Os escravos que tomavam conta do gado no campo não estavam autorizados a aproximar-se do senhor e muito menos da sua mesa. Esse era um serviço dos íntimos, daqueles que podiam partilhar e privar da presença do senhor e patrão. Entre nós, e até há ainda bem poucos anos, podíamos encontrar em algumas casas mais abastadas os criados de fora e os criados de dentro, e as tarefas não se confundiam, nem havia misturas.
Ora, nesta parábola há misturas, há uma alteração de funções e um assumir de uma dignidade que uma vez mais não é natural e foge aos parâmetros do estabelecido. O escravo ao servir o senhor abandona a sua condição de escravitude, de afastamento da casa e mesa do senhor, e passa a participar e partilhar da sua intimidade, também da sua mesa de que depois se pode alimentar. Adquire assim uma outra natureza e uma outra dignidade, que não lhe advêm do trabalho realizado mas do senhor que o introduz dentro de casa e junto de si através do pedido feito. É o senhor que o transforma e lhe dá o que por ele próprio não conseguiria obter por si e pelo seu esforço.
Tudo isto se relaciona com a fé e com o pedido dos Apóstolos a que o Senhor lhes aumente a fé. Há um trabalho quotidiano a realizar, um trabalho da fé, que se compara ao trabalho do campo do escravo. Está nas nossas mãos fazê-lo, procurar fazê-lo, percebendo os limites e as possibilidades que se nos apresentam nesse conhecimento da vontade de Deus e na busca da vivência fiel a essa mesma vontade.
Mas quando chegamos ao fim do trabalho, dessa tentativa de conhecimento e fidelidade, temos que perceber que há ainda um serviço a cumprir, uma partilha a realizar, a do serviço à mesa do Senhor, que nos alterará definitivamente não por nosso mérito mas por bondade e amor do Senhor. É então que a fé se faz dom e supera todas as nossas expectativas, todas as nossas buscas, nos ultrapassa na fragilidade da nossa condição, como pequeno grão de mostarda é capaz de mover montanhas.
A Eucaristia, com o que comporta de mesa e refeição, de intimidade com o Senhor, e o mandamento do amor, a caridade e a solidariedade, como o que implica de serviço a um outro que partilha a nossa vida, são ou podem ser, afinal, esse extra que nos é exigido ao final de cada dia, de cada jornada, pode ser esse serviço que nos introduz na intimidade do Senhor e nos dá outro estatuto, outra dignidade.
Peçamos portanto, aumenta Senhor a nossa fé, mas também a nossa disponibilidade e abertura para depois das canseiras, das buscas e das lutas estarmos dispostos a servir-te à mesa, a encontrarmo-nos contigo na intimidade da Palavra, do Pão e dos irmãos, a fazermos o que devemos fazer.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    «Aumenta a nossa fé”, disseram os Apóstolos ao Senhor. É também o que pedimos a Jesus, com frequência, porque nos sabemos “pecadores”, “ frágeis”, porque vacilamos … Sabemos que a fé é um dom de Deus, um processo dinâmico, que se constrói ao longo do tempo. Algo que não sabemos definir mas que não é irracional, cego, mas que se fundamenta na confiança em Deus, que é qualitativo, como o “pequeno grão de mostarda que é capaz de mover montanhas”. É como afirma, Frei José Carlos, …” no caso da fé há processos e meios cujos fins ultrapassam tudo o que é racionalmente concebível, previsível, calculável.
    Perante esta realidade a atitude a tomar é a da atenção solícita, a da disponibilidade total a um dom que nos escapa da mão e do controlo mas que não podemos deixar de procurar e de querer conquistar e possuir.”
    Somos “instrumentos nas mãos do Senhor” como oportunamente nos recordou, devendo reconhecer com humildade até onde podemos ir com os dons que nos foram concedidos e confiando que o resto será feito pelo Senhor.
    Apesar da complexidade deste “mistério”, deixa-nos o conforto que está nas nossas mãos fazer esse trabalho de fé, …” percebendo os limites e as possibilidades que se nos apresentam nesse conhecimento da vontade de Deus e na busca da vivência fiel a essa mesma vontade.”
    Oremos com o Frei José Carlos “aumenta Senhor a nossa fé, mas também a nossa disponibilidade e abertura para depois das canseiras, das buscas e das lutas estarmos dispostos a servir-te à mesa, a encontrarmo-nos contigo na intimidade da Palavra, do Pão e dos irmãos, a fazermos o que devemos fazer.”
    Obrigada pela partilha , por nos ajudar na compreensão da fé e no modo como proceder para que a mesma se realize no nosso quotidiano, na “fragilidade da nossa condição”. Bem haja.
    Um abraço fraterno, MJS

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