domingo, 20 de março de 2011

Homilia do II Domingo da Quaresma

Nesta nossa caminhada quaresmal para a celebração da Páscoa acompanhamos a caminhada física e histórica de Jesus para Jerusalém, e neste segundo domingo da Quaresma passamos pelo alto do monte e pelo mistério da manifestação da glória de Jesus através da transfiguração diante dos apóstolos Pedro, Tiago e João.
É um acontecimento misterioso que se insere na caminhada de Jesus e se contrapõe às palavras que pouco antes tinha proferido aos discípulos no sentido do que o esperava e da dificuldade do seguimento face ao escândalo da cruz. Jesus tinha avisado os discípulos para o que iria suceder, para a sua prisão, para o julgamento e para a morte aviltante na cruz.
Face a tais palavras Pedro, como chefe do grupo, tinha não só manifestado o seu medo e desejo de regressar à Galileia, mas também a disponibilidade para o defender ainda que à custa da lei da força. Diante da necessidade de assumirem a cruz como algo pessoal e inevitável no seu seguimento, como um cálice que teriam que beber, Tiago manifestara igualmente, ainda que certamente inconsciente do que dizia, ser capaz de beber desse cálice com o seu Mestre.
É assim, e face a estas disponibilidades, que Jesus sobe ao alto do monte e se transfigura diante de Pedro, Tiago e João, que não podia deixar de estar presente na medida em que era o discípulo amado. Compreendemos que sendo o discípulo amado era impossível que não estivesse presente, pois também ele necessitava ouvir a palavra do Pai, ser testemunha da revelação do amor do Pai, para poder assegurar aos outros a razão da sua fidelidade e do seu amor.
Pedro é chamado e está presente não só porque é o chefe do grupo, mas sobretudo porque necessita perder o medo, necessita vislumbrar um pouco da glória que os espera, não na Jerusalém para a qual se dirigem, mas para lá de Jerusalém e de tudo o que entregarem pela causa de Jesus. A transfiguração de Jesus diante de Pedro tem o objectivo de alicerçar a sua confiança, a sua entrega mais livre e menos comprometida politicamente. Pedro necessita ver que aquele que vai abandonar e negar cobardemente não é apenas um pobre carpinteiro de Nazaré que ele irreflectidamente seguiu, mas é de facto o filho de Deus que se entrega nas mãos dos homens que não o reconhecem nem o aceitam.
Tiago é também convidado a subir ao monte na medida em que se prontifica a beber o cálice de sangue de que Jesus fala, mas sobretudo porque necessita testemunhar a presença de Moisés e Elias, a dimensão e a glória daqueles que se poderão sentar ao lado de Jesus no seu reino, nesses lugares que ele tinha pedido para si e para seu irmão. Se Moisés representa a lei, a lei que Jesus não veio suprimir mas aperfeiçoar e Elias representa a promessa profética do Messias justo e salvador, representam simultaneamente a vida e a morte, a história e a eternidade, pois Moisés é a figura da história e do povo que morreu sem entrar na terra prometida enquanto que Elias é aquele que não morreu e foi arrebatado ao céu, afinal a terra verdadeiramente prometida para todos. Os lugares disputados por Tiago serão assim daqueles que também tiverem os olhos postos na terra prometida e lhe forem fiéis no cumprimento dos mandamentos, e ele necessita saber isso para ser fiel e beber o cálice.
Os três discípulos são assim testemunhas de uma manifestação que os fortalece no seu seguimento e no seu amor, mas sobretudo são testemunhas de uma glória que poucas vezes é manifestada e se contrapõe à humildade e simplicidade de Jesus.
Porque é esta a imagem habitual de Jesus, uma imagem que se constrói desde o momento do seu nascimento quando não há lugar para ele em nenhuma casa, em nenhuma estalagem e tem que nascer na manjedoura de uma gruta onde se guardavam animais. Por esta razão ele se considera um “sem abrigo”, alguém que não tem nada nem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça.
Notamos também esta simplicidade e humildade, a necessidade de passar despercebido, quando depois de todas as curas e milagres proíbe as pessoas de falarem dele, de anunciarem a fonte da graça de que tinham sido objecto. Jesus procura, ainda que algumas vezes infrutiferamente, todo o afastamento e toda a glorificação por parte dos homens. Não é esse o seu objectivo e nem a sua necessidade.
E assim acontece, porque a sua humildade e simplicidade são algumas vezes iluminadas por Aquele que de facto é a fonte da glorificação e o pode de verdade glorificar. A primeira manifestação desta glória acontece na noite mesma do seu nascimento, quando um grupo de anjos canta a glória de Deus nos céus e convida os pastores a acolherem aquele menino recém-nascido como o Messias prometido. Depois, no momento do baptismo no rio Jordão, é o Pai que se lhe manifesta e o acolhe no seu amor, revelando a sua predilecção. E por fim temos este momento da transfiguração diante de Pedro, Tiago e João, no qual do meio da nuvem a voz do Pai revela que este, este Jesus humilde e quase despercebido, é o seu filho muito amado.
É um momento e uma revelação extremamente significativa para os discípulos e para nós na medida do nosso projecto e desejo de seguir Jesus, de lhe procurar ser fiel assumindo a cruz que temos que levar e o cálice que teremos que beber. Porque tal como com Jesus não podemos esperar, nem desejar, nem colocar as nossas expectativas de glorificação nos homens, como diz o Salmo, naqueles que nem a si se podem salvar; mas tal como Jesus devemos esperar e colocar a nossa esperança de glória no Pai do céu, naquele que de verdade e de facto glorifica.
É este afinal o objectivo do mistério da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João, mostrar-lhes a glória que lhe é dada pelo Pai, por Aquele com quem vive em doce intimidade e obediência, e é capaz de iluminar a noite do desespero, do sofrimento, da solidão e da morte, sua e de todos os que arriscam viver a mesma relação.
Terminemos com as palavras das orações da Solenidade da Transfiguração na Igreja Ortodoxa, pedindo e aspirando à graça da nossa mesma transfiguração em Cristo, “faz brilhar Senhor, também sobre nós pecadores, a tua luz eterna”.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    A Homilia do II Domingo da Quaresma que connosco partilha, ajuda-nos na compreensão do mistério da transfiguração de Jesus (Mt 17, 1-9) diante dos Apóstolos Pedro, Tiago e João, no alto do monte, e dá-nos simultaneamente uma retrospectiva de alguns dos momentos e actos mais significativos da vida de Jesus.
    Como nos recorda, ainda que Jesus viva desde o seu nascimento uma vida humilde, simples, e discreta, ... “a sua humildade e simplicidade são algumas vezes iluminadas por Aquele que de facto é a fonte da glorificação e o pode de verdade glorificar.”
    E como nos escreve, entre as várias manifestações de glória, …” temos este momento da transfiguração diante de Pedro, Tiago e João, no qual do meio da nuvem a voz do Pai revela que este, este Jesus humilde e quase despercebido, é o seu filho muito amado.” E permita-me que continue a citá-lo.
    …” É um momento e uma revelação extremamente significativa para os discípulos e para nós na medida do nosso projecto e desejo de seguir Jesus, de lhe procurar ser fiel assumindo a cruz que temos que levar e o cálice que teremos que beber. Porque tal como com Jesus não podemos esperar, nem desejar, nem colocar as nossas expectativas de glorificação nos homens, como diz o Salmo, naqueles que nem a si se podem salvar; mas tal como Jesus devemos esperar e colocar a nossa esperança de glória no Pai do céu, naquele que de verdade e de facto glorifica.”…
    Saibamos na nossa vida quotidiana, viver o exemplo de humildade e simplicidade de Jesus, olhar e acolher o outro, o nosso próximo, com os mesmos valores com que Ele o fez.
    Peçamos ao Senhor que nos ilumine a todos, sem excepção, na sua infinita misericórdia, nos momentos que mais precisarmos.
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha desta profunda Homilia que ilustrou com tanta beleza, que nos conforta e nos ajuda a repensar a nossa vida, o nosso desejo de seguir Jesus. Bem haja.
    Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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