Creio que todos nós,
ou quase, conhecemos a saga do “Sozinho em Casa”, que praticamente nos últimos
anos nos tem sido impingida nesta quadra natalícia por vários canais
televisivos. Todos nos recordamos, ou quase, de uma família tão absorvida pelo Natal,
pela azáfama dos preparativos e pela necessidade de viajar, que acaba por esquecer
o filho mais novo em casa.
Ao lermos no Evangelho
de São Lucas o episódio da perda e encontro de Jesus por parte de Maria e de
José em Jerusalém, podemos sem querer associar a família de Nazaré a esta
família suficientemente louca que encontramos no filme e à perda de um filho
por distracção. Face ao que nos conta o Evangelho poderíamos dizer que Maria e
José podiam ter tido um pouco mais de cuidado.
Contudo, tal ideia nada
tem de relacionável, e não só porque nos confrontamos com duas famílias completamente
diferentes, no espaço, no tempo e nas circunstâncias, mas sobretudo porque a
perda e encontro de Jesus em Jerusalém é uma metáfora proléptica de uma outra
perda e encontro que ocorrerá também em Jerusalém e será objectivamente
estruturante para todas as perdas e encontros que encontramos nos Evangelhos.
Neste sentido, e
olhando um pouco mais atentamente para o relato e os dados fornecidos, não
podemos deixar de ter presente que o dia de jornada que Maria e José realizam
não só os tinha afastado suficientemente de Jerusalém como aproximado bastante
da sua terra Nazaré. O descuido de Maria e José é assim bastante grave, quase
simétrico ao desespero com que depois procuram Jesus, e por isso pouco plausível.
Por outro lado, não podemos
deixar de ter presentes os três dias que levam a encontrar Jesus, três dias que
correspondem aos mesmos três dias do sepultamento de Jesus, à mesma
circunstância da perda de Jesus por parte dos discípulos e à sua busca e
encontro na manhã de Páscoa por Maria Madalena.
De facto, a perda e
encontro de Jesus em Jerusalém por parte de Maria e José corresponde num nível familiar,
patriarcal, de clã, à mesma perda e encontro do grupo dos discípulos e das suas
pretensões e aspirações. Há um sentimento de propriedade, de apropriação do outro,
e neste caso de Jesus, que é completamente eliminado e iluminado na nova
realidade.
A perda e encontro de
Jesus no templo por parte de Maria e José correspondem a essa afirmação
dolorosa e provocadora de que o filho devia ocupar-se das coisas do Pai e da
casa do Pai. Jesus traça assim a fronteira entre a propriedade da filiação, da
obediência que devia a Maria e a José, e da sua natureza divina e missão. Jesus
não era propriedade deles nem estava ao serviço das suas pretensões e
expectativas.
O mesmo acontecerá
mais tarde com os discípulos, onde esta necessidade de eliminar a apropriação será
bastante forte e para a qual a paixão e a morte serão o processo mais concreto,
mais factível, ainda que igualmente mais doloroso, para o encontro com a desapropriação,
com a liberdade e diferença da missão e pessoa de Jesus.
Face a isto, se a
perda e encontro de Jesus em Jerusalém eliminam a pretensão e o desejo de
apropriação do outro como propriedade em virtude das mais diversas possibilidades
de relação, ilumina igualmente o novo tipo de relações que são possíveis a
partir da incarnação do Filho de Deus e da filiação divina em que somos
integrados.
Como é possível encontrar
em outros acontecimentos narrados pelos Evangelhos, e nomeadamente naqueles que
se referem ao louvor da maternidade de Maria, com Jesus as relações, familiares,
hierárquicas, sociais, profissionais ou de amizade, devem ser estabelecidas e fundamentadas
no cumprimento da vontade do Pai, no cuidado da casa do Pai.
A celebração da Festa
da Sagrada Família no âmbito da oitava do Natal é assim um convite à iluminação
das nossas diversas relações, nesse sentido de que devem ser uma busca, uma procura,
uma atenção ao outro enquanto imagem de Deus e portanto templo do Espirito
Santo e habitação do Pai.
Num momento histórico
em que em várias partes do mundo se reclama o direito de adopção para alguns grupos
específicos, enquanto em outras partes se reclama o direito da decisão sobre a
vida do gerado, podemos e devemos questionar-nos se tais reivindicações
assentam na atenção ao outro enquanto templos de Deus ou se pelo contrário não
são apenas reivindicações de mais uma apropriação, de um desejo do outro, e
neste caso de um outro sem poder e indefeso, como meio de satisfação pessoal, mais
um bem descartável da nossa sociedade de consumo.
O Evangelho diz-nos
que depois do incidente de Jerusalém Jesus regressou com Maria e José a Nazaré,
que lhes era obediente e ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de
Deus e dos homens. Que também nós procuremos crescer em sabedoria, estatura e
graça diante de Deus, acolhendo a diferença dos nossos irmãos e procurando que
a paz de Cristo reine em todos os corações através da caridade libertadora que
nos devemos uns aos outros por Jesus Cristo nosso Senhor.
Ilustração: “Sagrada
Família”, de Cláudio Coelho, Museu de Belas Artes de Budapeste.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarAo ler e reler esta maravilhosa e bela Meditação,tão profunda da Homilía da Festa da Sagrada Família,que nos ajudou a reflectir mais profundamente.Gostei muito e como nos diz o Frei José Carlos,também nós procuremos crescer em sabedoria,e graça diante de Deus,acolhendo a diferença dos nossos irmãos e procurando que a paz de Cristo reine em todos os corações através da caridade libertadora que nos devemos uns aos outros por Jesus Cristo Nosso Senhor.Obrigada,Frei José Carlos,pela bela partilha e pela maravilhosa ilustração.Bem haja.Desejo-lhe um bom fim de Ano de 2012.Que o Novo Ano de 2013,seja cheio de muita Paz e Alegria e muita saúde para todos nós.Que o Senhor o ilumine e o proteja e o abençõe.
Um abraço fraterno.
AD
Frei José Carlos,
ResponderEliminarComo nos salienta ...” A celebração da Festa da Sagrada Família no âmbito da oitava do Natal é assim um convite à iluminação das nossas diversas relações, nesse sentido de que devem ser uma busca, uma procura, uma atenção ao outro enquanto imagem de Deus e portanto templo do Espirito Santo e habitação do Pai.” (…)
Grata, Frei José Carlos, pela partilha do texto da Homília da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, profundo, que nos desinstala, por exortar-nos a …” Que também nós procuremos crescer em sabedoria, estatura e graça diante de Deus, acolhendo a diferença dos nossos irmãos e procurando que a paz de Cristo reine em todos os corações através da caridade libertadora que nos devemos uns aos outros por Jesus Cristo nosso Senhor.”
Votos de um Bom Ano de 2013, Frei José Carlos, e que o Senhor o cumule de todas as bençãos, votos extensivos aos irmãos da comunidade dominicana, da Família do Frei José José Carlos e a todos os seguidores do blog.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
P.S. Permita-me, Frei José Carlos, neste quase virar de página do ano de 2012, que peça para o peregrino Alexandre e Família e para todas as pessoas que deixaram o País onde habitavam pelos mais diversos motivos, que o Senhor os abençoe e proteja e caminhe lado a lado com todos permanentemente.
Para todos os que perderam o trabalho e vivem momentos de grande angústia que o Senhor os ajude a peregrinar com fé, confiança, coragem e esperança num futuro melhor, mais solidário, mais fraterno, em que todos temos lugar para viver com dignidade.
Obrigada. MJS