domingo, 17 de fevereiro de 2013

Homília do I Domingo da Quaresma

Para muitos de nós este domingo é o início oficial da Quaresma, pois não tivemos oportunidade de participar na celebração da quarta-feira de cinzas, dia em que começa a contagem dos quarenta dias até à Páscoa da Ressurreição do Senhor.
E no início deste tempo de preparação para esse momento, todos temos experiência de como os grandes e importantes momentos se preparam com antecedência, a leitura do Evangelho apresenta-nos a narração das tentações de Jesus.
É um episódio de todos nós conhecido, pois todos os anos nos confrontamos com ele, mas ainda assim é um episódio que sempre nos convêm revisitar, pois em cada uma das tentações de Jesus nos encontramos com as nossas tentações pessoais.
Neste sentido gostava de partilhar convosco um pormenor que trespassa as três tentações de Jesus mas que na última adquire uma outra tonalidade, uma outra dimensão, pois Jesus conduz a justificação do seu comportamento, da sua resistência e vitória sobre as tentações, ao seu sentido último.
Assim, tanto na primeira como na segunda tentação, quando o demónio solicita a transformação da pedra em pão e no alto do momento oferece o poder sobre o mundo, Jesus responde com as palavras da Escritura, Jesus cita os textos bíblicos, justificando a sua não adesão à proposta do demónio com a necessidade de o homem viver com algo mais que o pão e de a adoração só se dever prestar a Deus.
Perante estas respostas, o diabo tenta Jesus pela terceira vez, mas fá-lo usando a inteligência, a sua astúcia, pois propõe a Jesus uma atitude que se insere e corresponde à mesma palavra bíblica que Jesus tinha utilizado. Ao tentar Jesus pela terceira vez o demónio utiliza expressões da Sagrada Escritura, serve-se da mesma justificação que Jesus tinha utilizado, só que desta feita o objectivo é o equívoco, é o engano. Afinal está escrito que podes fazer isto!
E é aqui, e perante este desafio, que Jesus assume a verdade das suas respostas anteriores até ao seu fim último, até às últimas consequências. Jesus tem uma atitude diferente, Jesus resiste às tentações, não porque está escrito que deve ser assim, não porque faz parte de um texto codificado, mas porque esse texto e essas palavras são palavras de Deus, e são palavras vivas e vivificantes.
Não é porque está escrito que se pode tentar a Deus, não é porque está escrito que se tomam determinados compromissos, que se fazem determinadas opções de vida, ainda que difíceis e algumas carregadas de sofrimento, mas porque as palavras de Deus nos implicam, interagem connosco e portanto nos colocam numa outra situação, num outro estádio.
Jesus inverte assim a proposta do demónio, ultrapassa a lógica da exterioridade de que enfermam as tentações e mostra-nos que o importante, o verdadeiramente importante é a vida que as palavras comportam e a plenitude à qual nos conduzem.
A palavra é performativa, a palavra é agente e é acção, e portanto devemos estar conscientes dela e do seu poder, da transformação que opera nas realidades e na nossa própria vida.
Neste sentido, podemos dizer que as tentações de Jesus, bem como as nossas tentações pessoais, são tentações contra a palavra e o seu poder, contra a vida que elas comportam. Pelo que um dos nossos exercícios desta Quaresma deveria ser um discernimento muito claro da atenção que damos às palavras, à forma como as colocamos na exterioridade ou pelo contrário como as percebemos como mecanismos de vida.
São Paulo na Carta aos Romanos e no trecho que escutámos neste domingo vem ao nosso encontro nesta perspectiva, pois alerta-nos para o facto de a palavra estar perto de nós, na boca e no coração, ou seja, ela vive dessa dupla situação de exterioridade e interioridade, e nós necessitamos conjugá-las para que sejamos salvos, como nos diz São Paulo, para que aconteça a vida de que as palavras estão prenhes.
Procuremos pois através da oração e da leitura da Sagrada Escritura, que nos são oferecidas neste tempo preparatório da Quaresma de modo especial, encontrar-nos com a vida que decorre da Palavra, com a vida que nos é oferecida, e que podemos igualmente oferecer aos outros através da nossa palavra alentadora e reconfortante.

 
Ilustração: “Tentação de Jesus no monte”, de Duccio de Buoninsegna, Colecção Frick, Nova Iorque.  

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia do I Domingo de Quaresma que teceu aborda particularmente o excerto do Evangelho de São Lucas sob as tentações de Jesus que antecedem a Sua Paixão conjugado com o trecho de São Paulo na Carta aos Romanos sob um prisma profundo e interessante e que nos leva ao tema da verdade da conversão interior e da sua expressão no exterior.
    E passo a citar Frei José Carlos ...” Jesus tem uma atitude diferente, Jesus resiste às tentações, não porque está escrito que deve ser assim, não porque faz parte de um texto codificado, mas porque esse texto e essas palavras são palavras de Deus, e são palavras vivas e vivificantes. (…)
    (...) Jesus inverte assim a proposta do demónio, ultrapassa a lógica da exterioridade de que enfermam as tentações e mostra-nos que o importante, o verdadeiramente importante é a vida que as palavras comportam e a plenitude à qual nos conduzem. (…) podemos dizer que as tentações de Jesus, bem como as nossas tentações pessoais, são tentações contra a palavra e o seu poder, contra a vida que elas comportam. Pelo que um dos nossos exercícios desta Quaresma deveria ser um discernimento muito claro da atenção que damos às palavras, à forma como as colocamos na exterioridade ou pelo contrário como as percebemos como mecanismos de vida.”...
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda, que nos desinstala e ajuda-nos a repensar os nossos comportamentos, por incentivar-nos, recordando-nos, que podemos …” através da oração e da leitura da Sagrada Escritura, que nos são oferecidas neste tempo preparatório da Quaresma de modo especial, encontrar-nos com a vida que decorre da Palavra, com a vida que nos é oferecida, e que podemos igualmente oferecer aos outros através da nossa palavra alentadora e reconfortante.”
    Que o Senhor o ilumine, o guarde e abençoe.
    Bom descanso. Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que volte a partilhar o texto de uma oração.

    FAZER
    JEJUM
    DAS
    PALAVRAS

    Senhor, ajuda-nos a fazer jejum das palavras. Das palavras desnecessárias, ruidosas, poluídas.
    Das palavras dúplices e opulentas, das palavras que atropelam, das palavras injustas, das palavras
    que divergem e atraiçoam, das palavras que separam. Ajuda-nos a jejuar das palavras que Te escondem,
    das palavras onde o amor não emerge, das palavras confusas, ressentidas, atiradas como pedras, das palavras
    que muralham a comunicação, das palavras que nada mais permitem senão palavras. E que nesse jejum abramos
    mais o coração àquele silêncio onde os encontros verdadeiros se insinuam.

    (In, Um Deus Que Dança, Itinerários para a Oração, José Tolentino Mendonça, 2011)

    ResponderEliminar