Neste quinto e último
domingo da Quaresma, pois na próxima semana iniciaremos a Semana Santa com o
Domingo de Ramos, abandonamos a leitura do Evangelho de São Lucas, que nos
apresentou nestes domingos anteriores a figura de Jesus como Mestre, para nos
encontrarmos com a narração do episódio da mulher adúltera do Evangelho de São
João, um acontecimento no qual o estatuto de Jesus como Mestre é colocado à prova.
Antes deste
acontecimento Jesus tinha estado sob vigilância, sob observação atenta, e os
guardas do templo tinham sido mesmo enviados para o prender, ainda que não
tivessem cumprido a missão de que estavam incumbidos por se terem deixado
seduzir pelas suas palavras, como são acusados pelos escribas e príncipes dos
sacerdotes do templo.
A apresentação da
mulher apanhada em flagrante delito de adultério aparece assim desde o primeiro
momento como uma armadilha, como um estratagema para apanhar Jesus, pois
aqueles que a apresentam sabem perfeitamente a distância que Jesus tem mantido
e desenvolvido face à lei de Moisés de que eles se vão servir.
Há assim o objectivo
muito claro de colocar Jesus numa situação que o leve ao descrédito, se optar
por condenar a mulher seguindo os preceitos da lei de Moisés consagrados no
Deuteronómio e no Levítico, ou de o apanhar em flagrante ruptura com a lei, se
assumir a misericórdia que tem defendido, como na parábola do filho pródigo, e
não condenar a mulher.
Jesus desde o primeiro
momento apercebe-se da armadilha, não só porque a questão a ser verdadeira
deveria ser colocada às autoridades religiosas e judiciais instituídas, mas
sobretudo porque esta questão e esta apresentação contradizem a opinião que
ainda pouco antes tinham manifestado de Jesus.
Se na crítica à
inacção dos guardas do templo tinham afirmado a não-aceitação de Jesus e da sua
doutrina por parte de nenhuma das autoridades, como era possível que estivessem
agora a recorrer à sua opinião, a dar-lhe um poder decisivo tão importante?
É face a esta
incoerência, a este desastre de armadilha, que Jesus decide inverter a lógica
dos adversários, e assim num gesto de libertação, expresso nessas palavras
desenhadas no chão do templo, Jesus encosta os adversários à parede, confronta-os
com a necessidade premente de pureza para se poder atirar a primeira pedra.
Diante da falta de
consideração pela mulher, por ele próprio enquanto Mestre a que recorrem, Jesus
mostra àqueles homens a falta de consideração pela mesma lei de que se arvoravam
defensores, mostra-lhes como estavam em falta, pois não só não tinham trazido o
cúmplice do crime, como tão pouco estavam isentos de qualquer falta para
poderem exercer o papel de juízos e carrascos da falta da mulher. Os acusadores
passam assim a acusados.
Face à interpelação de
Jesus, de que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado, os
homens que trouxeram a mulher vão saindo discretamente, deixando-a sozinha face
a Jesus. É o último painel de um tríptico, nos quais Jesus se abaixa, se
levanta e volta a abaixar para se encontrar com a mulher pecadora, abandonada
pelos acusadores.
Poderíamos dizer que
nestes movimentos de Jesus se encerra todo o mistério da Incarnação, o processo
do encontro de Deus com o homem na sua condição pecadora. Deus baixa-se até ao
mais baixo do homem para lhe manifestar o perdão que ele próprio e os outros
não podem manifestar.
Mas para além da
manifestação do perdão de Deus, do convite de Jesus à conversão da mulher
pecadora e de cada um de nós, este acontecimento manifesta uma outra realidade
extremamente importante e sobre a qual não podemos deixar de estar alerta.
Denunciar uma
situação, indignar-se com uma situação de injustiça, de violência, de violação
dos direitos, em suma, denunciar o mal que existe, exige uma liberdade e uma
idoneidade que não podem deixar de estar previamente presentes naqueles que
denunciam.
Por isso, denunciar o
mal, o erro, é uma missão extremamente difícil e exigente, uma vez que aquele
que denuncia tem que estar livre de toda a culpa, de toda a falha, para que o
mesmo mal denunciado não o alcance. Sem a libertação prévia do mal, do pecado, ninguém
pode denunciar o mal do outro.
Neste sentido, e para
alcançarmos a liberdade necessária, necessitamos confrontar-nos com o nosso
próprio mal, com as nossas falhas e pecados, assumi-los e buscar o perdão que
muitas vezes apenas Deus nos pode conceder. Necessitamos descer também até ao
fundo, ao mais fundo de nós, para que nada fique escondido, nada fique sem luz
e sem perdão.
Tal como acontece com
Jesus face à armadilha que lhe montam com a mulher apanhada em adultério necessitamos
descer, baixar, recolher-nos na verdade, para depois nos podermos erguer e
enfrentar os desafios do mal e da mentira de olhos nos olhos.
Que este tempo da
Quaresma sirva para este encontro, para este recolhimento, de modo a que com a
vitória da ressurreição da Páscoa, com o erguer-se do vencedor da morte,
possamos nós também enfrentar e vencer todos os males e mentiras.
Que o Senhor nos ajude a descer ao fundo do nosso coração para encontrarmos a Verdade e o perdão de que necessitamos. Inter Pars
ResponderEliminarFrei José Carlos,
ResponderEliminarAo ler e reflectir sobre o texto da Homilia do V Domingo da Quaresma que teceu e partilha, tendo presente o excerto do Evangelho de S.João (8,1-11) e as leituras do Evangelho de S.Lucas dos domingos anteriores, como afirma …” A apresentação da mulher apanhada em flagrante delito de adultério aparece assim desde o primeiro momento como uma armadilha, como um estratagema para apanhar Jesus, pois aqueles que a apresentam sabem perfeitamente a distância que Jesus tem mantido e desenvolvido face à lei de Moisés de que eles se vão servir.”…
Do lado dos escribas e dos fariseus temos a hipocrisia, o pretexto para condenar Jesus e da parte de Jesus a justiça e o perdão para com aquela mulher, sem deixar de lhe recordar que deve seguir outro caminho. A armadilha vira-se contra os acusadores de Jesus.
Todos somos pecadores e no fundo de cada um de nós existe um pouco da atitude dos escribas e fariseus, particularmente quando apontamos o dedo ao outro para divulgar determinado género de acontecimentos ou para julgar os comportamentos que não se enquadram no “establishment”. A propósito, vou fazer parte do que ouvi de um padre, ontem à noite, a propósito do Evangelho deste domingo. E passo a citar tão fielmente quanto possível: “quando apontamos o dedo a alguém, há três que viram para nós”. Do ponto de vista gestual e como reflexão, a imagem é interessante, faz-nos deter para meditarmos nela..
Jesus veio para salvar-nos e não para condenar-nos. Mas Frei José Carlos vai mais além ao salientar-nos que …” denunciar o mal, o erro, é uma missão extremamente difícil e exigente, uma vez que aquele que denuncia tem que estar livre de toda a culpa, de toda a falha, para que o mesmo mal denunciado não o alcance. Sem a libertação prévia do mal, do pecado, ninguém pode denunciar o mal do outro.(…)
(…) Necessitamos descer também até ao fundo, ao mais fundo de nós, para que nada fique escondido, nada fique sem luz e sem perdão.”…
Façamos nossas as palavras de Frei José Carlos e …” Que este tempo da Quaresma sirva para este encontro, para este recolhimento, de modo a que com a vitória da ressurreição da Páscoa, com o erguer-se do vencedor da morte, possamos nós também enfrentar e vencer todos os males e mentiras.”
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, pela forma como nos ajudou na interpretação deste episódio na vida de Jesus, pela reflexão a que nos conduz hoje e ao longo da nossa caminhada, pela força que nos transmite. Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe.
Bom descanso.
Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana, com alegria, paz, confiança e esperança.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva