domingo, 17 de março de 2013

Homilia do V Domingo da Quaresma

Neste quinto e último domingo da Quaresma, pois na próxima semana iniciaremos a Semana Santa com o Domingo de Ramos, abandonamos a leitura do Evangelho de São Lucas, que nos apresentou nestes domingos anteriores a figura de Jesus como Mestre, para nos encontrarmos com a narração do episódio da mulher adúltera do Evangelho de São João, um acontecimento no qual o estatuto de Jesus como Mestre é colocado à prova.
Antes deste acontecimento Jesus tinha estado sob vigilância, sob observação atenta, e os guardas do templo tinham sido mesmo enviados para o prender, ainda que não tivessem cumprido a missão de que estavam incumbidos por se terem deixado seduzir pelas suas palavras, como são acusados pelos escribas e príncipes dos sacerdotes do templo.
A apresentação da mulher apanhada em flagrante delito de adultério aparece assim desde o primeiro momento como uma armadilha, como um estratagema para apanhar Jesus, pois aqueles que a apresentam sabem perfeitamente a distância que Jesus tem mantido e desenvolvido face à lei de Moisés de que eles se vão servir.
Há assim o objectivo muito claro de colocar Jesus numa situação que o leve ao descrédito, se optar por condenar a mulher seguindo os preceitos da lei de Moisés consagrados no Deuteronómio e no Levítico, ou de o apanhar em flagrante ruptura com a lei, se assumir a misericórdia que tem defendido, como na parábola do filho pródigo, e não condenar a mulher.
Jesus desde o primeiro momento apercebe-se da armadilha, não só porque a questão a ser verdadeira deveria ser colocada às autoridades religiosas e judiciais instituídas, mas sobretudo porque esta questão e esta apresentação contradizem a opinião que ainda pouco antes tinham manifestado de Jesus.
Se na crítica à inacção dos guardas do templo tinham afirmado a não-aceitação de Jesus e da sua doutrina por parte de nenhuma das autoridades, como era possível que estivessem agora a recorrer à sua opinião, a dar-lhe um poder decisivo tão importante?
É face a esta incoerência, a este desastre de armadilha, que Jesus decide inverter a lógica dos adversários, e assim num gesto de libertação, expresso nessas palavras desenhadas no chão do templo, Jesus encosta os adversários à parede, confronta-os com a necessidade premente de pureza para se poder atirar a primeira pedra.
Diante da falta de consideração pela mulher, por ele próprio enquanto Mestre a que recorrem, Jesus mostra àqueles homens a falta de consideração pela mesma lei de que se arvoravam defensores, mostra-lhes como estavam em falta, pois não só não tinham trazido o cúmplice do crime, como tão pouco estavam isentos de qualquer falta para poderem exercer o papel de juízos e carrascos da falta da mulher. Os acusadores passam assim a acusados.
Face à interpelação de Jesus, de que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado, os homens que trouxeram a mulher vão saindo discretamente, deixando-a sozinha face a Jesus. É o último painel de um tríptico, nos quais Jesus se abaixa, se levanta e volta a abaixar para se encontrar com a mulher pecadora, abandonada pelos acusadores.
Poderíamos dizer que nestes movimentos de Jesus se encerra todo o mistério da Incarnação, o processo do encontro de Deus com o homem na sua condição pecadora. Deus baixa-se até ao mais baixo do homem para lhe manifestar o perdão que ele próprio e os outros não podem manifestar.
Mas para além da manifestação do perdão de Deus, do convite de Jesus à conversão da mulher pecadora e de cada um de nós, este acontecimento manifesta uma outra realidade extremamente importante e sobre a qual não podemos deixar de estar alerta.
Denunciar uma situação, indignar-se com uma situação de injustiça, de violência, de violação dos direitos, em suma, denunciar o mal que existe, exige uma liberdade e uma idoneidade que não podem deixar de estar previamente presentes naqueles que denunciam.
Por isso, denunciar o mal, o erro, é uma missão extremamente difícil e exigente, uma vez que aquele que denuncia tem que estar livre de toda a culpa, de toda a falha, para que o mesmo mal denunciado não o alcance. Sem a libertação prévia do mal, do pecado, ninguém pode denunciar o mal do outro.
Neste sentido, e para alcançarmos a liberdade necessária, necessitamos confrontar-nos com o nosso próprio mal, com as nossas falhas e pecados, assumi-los e buscar o perdão que muitas vezes apenas Deus nos pode conceder. Necessitamos descer também até ao fundo, ao mais fundo de nós, para que nada fique escondido, nada fique sem luz e sem perdão.
Tal como acontece com Jesus face à armadilha que lhe montam com a mulher apanhada em adultério necessitamos descer, baixar, recolher-nos na verdade, para depois nos podermos erguer e enfrentar os desafios do mal e da mentira de olhos nos olhos.
Que este tempo da Quaresma sirva para este encontro, para este recolhimento, de modo a que com a vitória da ressurreição da Páscoa, com o erguer-se do vencedor da morte, possamos nós também enfrentar e vencer todos os males e mentiras.

 
Ilustração: A mulher adúltera diante de Jesus, de António Molinari, Museu Schloss Wilhelmshöhe, Kassel, Alemanha.

2 comentários:

  1. Que o Senhor nos ajude a descer ao fundo do nosso coração para encontrarmos a Verdade e o perdão de que necessitamos. Inter Pars

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  2. Frei José Carlos,

    Ao ler e reflectir sobre o texto da Homilia do V Domingo da Quaresma que teceu e partilha, tendo presente o excerto do Evangelho de S.João (8,1-11) e as leituras do Evangelho de S.Lucas dos domingos anteriores, como afirma …” A apresentação da mulher apanhada em flagrante delito de adultério aparece assim desde o primeiro momento como uma armadilha, como um estratagema para apanhar Jesus, pois aqueles que a apresentam sabem perfeitamente a distância que Jesus tem mantido e desenvolvido face à lei de Moisés de que eles se vão servir.”…
    Do lado dos escribas e dos fariseus temos a hipocrisia, o pretexto para condenar Jesus e da parte de Jesus a justiça e o perdão para com aquela mulher, sem deixar de lhe recordar que deve seguir outro caminho. A armadilha vira-se contra os acusadores de Jesus.
    Todos somos pecadores e no fundo de cada um de nós existe um pouco da atitude dos escribas e fariseus, particularmente quando apontamos o dedo ao outro para divulgar determinado género de acontecimentos ou para julgar os comportamentos que não se enquadram no “establishment”. A propósito, vou fazer parte do que ouvi de um padre, ontem à noite, a propósito do Evangelho deste domingo. E passo a citar tão fielmente quanto possível: “quando apontamos o dedo a alguém, há três que viram para nós”. Do ponto de vista gestual e como reflexão, a imagem é interessante, faz-nos deter para meditarmos nela..
    Jesus veio para salvar-nos e não para condenar-nos. Mas Frei José Carlos vai mais além ao salientar-nos que …” denunciar o mal, o erro, é uma missão extremamente difícil e exigente, uma vez que aquele que denuncia tem que estar livre de toda a culpa, de toda a falha, para que o mesmo mal denunciado não o alcance. Sem a libertação prévia do mal, do pecado, ninguém pode denunciar o mal do outro.(…)
    (…) Necessitamos descer também até ao fundo, ao mais fundo de nós, para que nada fique escondido, nada fique sem luz e sem perdão.”…
    Façamos nossas as palavras de Frei José Carlos e …” Que este tempo da Quaresma sirva para este encontro, para este recolhimento, de modo a que com a vitória da ressurreição da Páscoa, com o erguer-se do vencedor da morte, possamos nós também enfrentar e vencer todos os males e mentiras.”
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, pela forma como nos ajudou na interpretação deste episódio na vida de Jesus, pela reflexão a que nos conduz hoje e ao longo da nossa caminhada, pela força que nos transmite. Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe.
    Bom descanso.
    Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana, com alegria, paz, confiança e esperança.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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