domingo, 3 de março de 2013

Homilia do III Domingo da Quaresma


Como todos sabemos, no tempo de Jesus não havia jornais, nem televisão, nem internet, meios que hoje nos fazem aceder imediatamente à informação. Contudo, e apesar dessas faltas, a informação circulava e é por isso que vemos Jesus confrontado com a notícia da morte de um grupo de Galileus, morte ordenada por Pilatos aquando da celebração de um sacrifício.
É uma notícia que poderíamos considerar banal face ao conhecimento histórico que temos da acção repressiva de Pôncio Pilatos enquanto governador daquela região do império romano; mas deixa de o ser, e adquire relevância, na medida em que essa notícia, e a sua leitura de modo particular, interfere com Jesus e com a sua vida.
De certa forma, estamos já diante de uma possível leitura da morte de Jesus, pois também ele é Galileu e também ele será morto por intermédio da acção e do poder de Pilatos. A pergunta que subjaz à notícia da morte dos galileus pode aplicar-se a Jesus, ou seja, que pecados teriam cometido para sofrerem tal morte e portanto tal castigo da parte de Deus? Os galileus e Jesus!
Numa leitura estratégica poderíamos dizer que Jesus se antecipa à questão face à sua morte ignominiosa, e clarifica a morte dos galileus para que a sua morte não seja interpretada da mesma maneira. Jesus sente-se na urgência de alterar os princípios de leitura dos acontecimentos e para tal é necessário converter a imagem de Deus, de abolir as falsas imagens de Deus.
Esta necessidade é ainda mais urgente na medida em que o massacre ordenado por Pilatos ocorre durante a celebração de um sacrifício, ou seja, durante um acto que à partida é uma tentativa de restabelecimento da relação com Deus. A morte nesse contexto denuncia uma recusa total da parte de Deus, um bloqueio ao reatamento das relações com o divino, uma insensibilidade de Deus face às fraquezas do homem.
É para alterar esta imagem que Jesus conta àqueles que lhe trouxeram a notícia, e estavam infectados de uma imagem errada de Deus, a parábola da figueira estéril durante três anos.
Nesta parábola Jesus joga com a falsa imagem de Deus, assumida pelo proprietário que ordena o corte da árvore, e a verdadeira imagem veiculada pelo vinhateiro que apesar da esterilidade da figueira oferece ainda uma nova oportunidade.
É uma parábola perfeitamente perceptível para os seus ouvintes, uma vez que para a tradição a figueira, como a vinha e a romãzeira significavam a felicidade da terra prometida. A vinha simbolizava a alegria, a figueira simbolizava a doçura e a romãzeira a fertilidade.
A atitude do vinhateiro, com a proposta de uma última oportunidade, é uma atitude que se insere na longa tradição profética e na história da salvação, nas quais se encontra essa benevolência de Deus para com o povo, a intercessão para uma nova oportunidade, para uma não ruptura das relações de aliança.
Jesus vai assim ao encontro das palavras do Salmo 144, no qual é dito que Deus é lento para a ira e cheio de amor para com os seus fiéis, e da experiência de Moisés diante da sarça-ardente, quando Deus se lhe revela e revela a preocupação pelo seu povo escravo no deserto, como pudemos escutar na leitura do Livro do Êxodo.
Neste terceiro domingo da Quaresma, e face a esta leitura do Evangelho de São Lucas, somos assim, também nós, convidados a alterar a nossa imagem de Deus, as imagens de Deus tantas vezes distorcidas pelos acontecimentos trágicos e dolorosos da nossa vida e da nossa condição finita.
Quantas vezes, face a determinados acontecimentos, como uma morte prematura, um acidente, uma doença prolongada, um acto de injustiça contra nós, não nos deixamos vencer por essa ideia e imagem de um Deus que não se interessa por nós, de um Deus que no seu sadismo se satisfaz com o nosso sofrimento e a nossa angústia?
Quantas vezes, face ao recalcitrar do nosso pecado, das nossas situações de infidelidade e fraqueza, não cruzamos os braços desesperando da misericórdia de Deus, de uma nova oportunidade para fazer diferente?
A parábola da figueira e a vida de Jesus, com o que comporta de sofrimento e injustiça, bem como a história da Aliança de Deus com o povo eleito, mostram-nos que o nosso Deus é um Deus sensível, é um Deus que se preocupa e nos acompanha nas nossas dificuldades, um Deus que não espera apenas o regresso dos seus filhos perdidos pelo mundo, mas amorosamente vai ao seu encontro para os trazer aos ombros.
A nós, a cada um de nós, compete essa atenção e essa responsabilidade face ao momento que é hoje, que acontece aqui, à nova oportunidade que Deus nos oferece neste momento histórico e nesta circunstância.
Tal como Moisés, face à revelação da preocupação de Deus pelo seu povo, não podemos deixar de nos oferecer para ir ao encontro dos nossos irmãos, para a luta pela libertação de toda a escravidão, nomeadamente a escravidão dos falsos deuses, desses deuses que não são capazes de morrer.
 
Ilustração: Plátano coberto de neve na cidade de Gossau, Suíça.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Li com muito interesse a Homilia deste Domingo III da Quaresma,maravilhosamente bela e esclarecedora,muito profunda.E como nos diz o Frei José Carlos,a parábola da figueira e a vida de Jesus,com o que comporta de sofrimento e injustiça, bem como a história da Aliança de Deus com o povo eleito,mostram-nos que o nosso Deus é um Deus sensível,é um Deus que se preocupa e nos acompanha nas nossas dificuldades,um Deus que não espera apenas,o regresso dos seus filhos perdidos pelo mundo,mas amorosamente vai ao seu encontro-para os trazer aos ombros.Obrigada,Frei José Carlos,pelas belas palavras que partilhou connosco e pela beleza da ilustração,que muito gostei.Desejo-lhe uma boa noite.Votos de uma boa semana.Que o Senhor o ilumine e o abençoe.Bem-haja.
    Um abraço fraterno.
    AD

    ResponderEliminar
  2. Frei José Carlos,

    A liturgia do III Domingo da Quaresma e a Homilia que teceu constituem uma excelente oportunidade de reflexão face ao período que vivemos, às circunstâncias, às responsabilidades a que somos chamados a assumir.
    Como nos salienta no texto, a notícia que é levada a Jesus, …”a sua leitura de modo particular, interfere com Jesus e com a sua vida. (…)
    (…) Numa leitura estratégica poderíamos dizer que Jesus se antecipa à questão face à sua morte ignominiosa, e clarifica a morte dos galileus para que a sua morte não seja interpretada da mesma maneira. Jesus sente-se na urgência de alterar os princípios de leitura dos acontecimentos e para tal é necessário converter a imagem de Deus, de abolir as falsas imagens de Deus”… contando “àqueles que lhe trouxeram a notícia” a parábola da figueira estéril.
    É neste Deus de amor, de esperança, compassivo, que espera por todos nós, que não nos abandona, mesmo quando nos julgamos indignos do Seu amor que devemos confiar. Para Jesus é a espera do bem de amanhã mais do que a esterilidade ou os erros do passado que são importantes. É a confiança na conversão de todo o ser humano da parte de um Deus misericordioso, compassivo e a responsabilidade de cada um de nós na participação do processo de transformação que nos leva ao desejo e ao empenhamento na construção de um mundo de paz, de justiça, de fraternidade.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, oportuna, que nos questiona e consola, ao recordar-nos que …” A parábola da figueira e a vida de Jesus, com o que comporta de sofrimento e injustiça, bem como a história da Aliança de Deus com o povo eleito, mostram-nos que o nosso Deus é um Deus sensível, é um Deus que se preocupa e nos acompanha nas nossas dificuldades, um Deus que não espera apenas o regresso dos seus filhos perdidos pelo mundo, mas amorosamente vai ao seu encontro para os trazer aos ombros”. …
    Bem-haja. Que o Senhor o ilumine, o guarde e abençoe.
    Bom descanso.
    Continuação de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    ResponderEliminar