domingo, 11 de setembro de 2011

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum

Os textos da Liturgia da Palavra deste domingo não podiam ser mais adequados diante do aniversário sobre o atentado do World Trade Center, acontecido neste mesmo dia há dez anos atrás. Foi um acontecimento que marcou indelevelmente a história e a civilização ocidental, pois não só vimos globalmente em directo e ao segundo um acto tremendo de ira e rancor, como assistimos ao nascimento de um tempo em que prevaleceu mais a vingança e a desconfiança do que a compaixão e a compreensão de que nos fala o Evangelho deste domingo e as demais Leituras.
O Livro de Ben Sirá, esse sábio do século segundo antes de Cristo e que lemos na primeira Leitura, deixa já àqueles que o lêem essa questão inevitável da correspondência entre o bem ou mal que se faz e a misericórdia e justiça que se espera de Deus. De facto, como se pode esperar a ajuda ou a salvação de Deus quando se vive na ira e no rancor, quando se constrói a violência? Ben Sirá é neste aspecto muito claro e conclui que Deus não pode estar de maneira nenhuma do lado daqueles que vivem na violência e no ódio.
E Deus não está do lado desses homens, nem poderá estar, não só pela violência em si, pelo mal que lhe está intrínseco, mas sobretudo porque a violência atinge o outro na sua carne, atinge o outro enquanto semelhante. O ódio, o rancor e a violência atingem desta forma a dignidade da vítima, bem como a dignidade do violento, produzindo assim uma degradação da própria natureza de um e outro, degradando a divinidade humana existente. E desta forma atinge o próprio Deus enquanto natureza divina e fonte de divinização.
Para combater esta ira e rancor, a violência e o ódio, esta degradação humana e divina, Ben Sirá apresenta não só o fim a que todos os homens estão sujeitos, a morte, e à luz da qual todos são iguais e fracos, mas também a Aliança de Deus, essa mão estendida para a salvação e a dignificação. Em virtude da sua finitude o homem devia libertar-se de toda a violência e ódio que o degrada, e pela oferta generosa de Deus de um projecto de vida divina essa libertação devia ser mais consentânea.
A parábola que Jesus conta a Pedro, depois de este lhe ter perguntado sobre as vezes que devia perdoar o seu irmão, vai também neste sentido da correspondência entre o bem recebido e o perdão dispensado. Mas não fica numa dimensão equitativa, aritmética, como pode parecer à primeira vista; bem pelo contrário, vai um pouco mais longe e assinala a dimensão extrema da gratuidade e da liberdade que deve ser intrínseca a qualquer dom e a qualquer perdão.
Neste sentido, o servo, que não foi capaz de se compadecer do seu companheiro, devia ter percebido a magnanimidade do perdão de que tinha sido objecto por parte do seu Senhor e de acordo com essa magnanimidade e generosidade deveria ter agido da mesma forma. Não agindo compassivamente o servo mostrou-se indigno do perdão e do dom recebido, uma vez que não só não o soube perceber como também não o soube apreciar através do exercício do mesmo.
Podemos ver também nesta parábola que a dignidade do servo, que o Senhor salvaguarda através do perdão da dívida e da sua libertação, não é correspondida por parte do mesmo servo em relação ao companheiro. Também aqui o dom do Senhor é afinal desperdiçado e portanto passível de condenação, e de reintegração no património senhorial.
A questão do perdão, que Pedro coloca a Jesus, abre-nos assim um leque vastíssimo de possibilidades de reflexão, pois não se trata apenas do facto em si mas das suas diversas dimensões e potencialidades. A questão não está na quantidade do perdão, mas na forma como se perdoa, na qualidade do perdão.
Uma atitude, um gesto, que não pode deixar de partir, como vimos pela parábola, de um outro dom já recebido, o perdão e a compaixão de Deus. Como um dom deve frutificar, deve render para o mesmo Senhor enquanto meio ou instrumento para um qualquer outro alcançar o perdão divino. Um gesto ou uma atitude que exige uma consciência de dignidade, que antes de mais nos é demonstrada pelo perdão recebido e portanto nos é exigida face ao outro. Diante de qualquer ofensa, de qualquer divida, não podemos perder nem deixar de ter presente a dignidade do outro. O perdão dignifica o perdoado e aquele que perdoa.
E esta dignidade é ainda mais exigente e mais acutilante na medida em que assumimos as palavras de São Paulo da Carta aos Romanos, ou seja, quer vivamos quer morramos pertencemos ao Senhor. Neste caso, quer recebamos o perdão ou quer sejamos convidados a perdoar não podemos esquecer que numa e noutra posição pertencemos ao Senhor e o perdão que exercitarmos é também do Senhor, é dom da sua graça.
Como somos limitados, fracos, e muitas vezes nos deixamos governar mais pelo nosso orgulho e pela soberba do que pela verdadeira consciência da nossa infidelidade e fragilidade, necessitamos rogar ao Senhor que venha em nosso auxílio e nos conceda não só o dom do perdão das nossas faltas, mas também de saber perdoar e de aceitar o perdão.
Nessa humildade poderemos testemunhar que o nosso Deus é Senhor de vivos e de mortos, de pecadores e de santos, daqueles que perdoam e são perdoados; é Senhor de todos pelo dom da sua vida entregue em resgate e perdão das nossas faltas, dom que actualizamos a cada Eucaristia e nos confirma na esperança da sua misericórdia.



1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia do XXIV Domingo do tempo Comum que partilha connosco é profundo e leva a questionar-nos sobre a relação que estabelecemos com Deus no que concerne o perdão das nossas faltas, como perdoamos o nosso semelhante (a qualidade do nosso perdão) e como procedemos com os outros em situações de ira ou de rancor. E como nos afirma os textos da Liturgia da Palavra não podiam ser mais apropriados no dia em que decorrem 10 anos sobre o atentado do World Trade Center. O Mundo transformou-se de forma radical porque a dimensão dos acontecimentos e a atitude tomada pelas várias formas de “fundamentalismo” seja ocidental ou outro, contribuem para que nada volte a ser como no passado. Assistimos ao crescimento do ódio, da violência e da falta de discernimento ou ao surgimento de novas formas de obscurantismo e como nos diz “assistimos ao nascimento de um tempo em que prevaleceu mais a vingança e a desconfiança do que a compaixão e a compreensão de que nos fala o Evangelho deste domingo e as demais Leituras.”
    Como nos salienta ...” Para combater esta ira e rancor, a violência e o ódio, esta degradação humana e divina, Ben Sirá apresenta não só o fim a que todos os homens estão sujeitos, a morte, e à luz da qual todos são iguais e fracos, mas também a Aliança de Deus, essa mão estendida para a salvação e a dignificação.”…
    Quando equacionamos a questão do perdão colocada por Pedro a Jesus e a resposta dada por Jesus em forma de parábola, como o Frei José Carlos nos salienta ...” abre-nos assim um leque vastíssimo de possibilidades de reflexão, pois não se trata apenas do facto em si mas das suas diversas dimensões e potencialidades. A questão não está na quantidade do perdão, mas na forma como se perdoa, na qualidade do perdão.
    Uma atitude, um gesto, que não pode deixar de partir, como vimos pela parábola, de um outro dom já recebido, o perdão e a compaixão de Deus. Como um dom deve frutificar, deve render para o mesmo Senhor enquanto meio ou instrumento para um qualquer outro alcançar o perdão divino. Um gesto ou uma atitude que exige uma consciência de dignidade, que antes de mais nos é demonstrada pelo perdão recebido e portanto nos é exigida face ao outro. Diante de qualquer ofensa, de qualquer divida, não podemos perder nem deixar de ter presente a dignidade do outro. O perdão dignifica o perdoado e aquele que perdoa.”…
    Se perdoar, em algumas circunstâncias, não é fácil, perdoar verdadeiramente, esquecendo, é muito mais difícil, implica dignidade, humildade, generosidade, compaixão, ter um coração sincero onde Jesus habita em permanência, fazendo aos outros o que pedimos e recebemos de Jesus.
    Como nos recorda o Frei José Carlos ...” necessitamos rogar ao Senhor que venha em nosso auxílio e nos conceda não só o dom do perdão das nossas faltas, mas também de saber perdoar e de aceitar o perdão.”
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha desta Homilia, importante, que nos faz reflectir, que nos ajuda a rever muitas das nossas atitudes, a coerência e a verdade das mesmas. Bem-haja.
    Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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