terça-feira, 6 de setembro de 2011

Jesus passou a noite em oração a Deus (Lc 6,12)

O Evangelho de São Lucas conta-nos que sempre e antes de qualquer acção importante Jesus se retirava para rezar ao Pai, e como no caso de hoje, em que elege os seus apóstolos, passou a noite inteira em oração.
É um sinal da sua intimidade com o Pai, dessa relação profunda que mantém com Deus, mas é também um sinal da grande experiência de oração que pratica e vive. Jesus sabe que necessita subir ao monte ou refugiar-se no deserto para se encontrar com o Pai, mas sabe também que é durante a noite que esse encontro é mais fácil. Ao silêncio do monte ou do deserto acresce o silêncio da noite.
Por esta razão as grandes ordens monásticas e a grande tradição da Igreja Oriental privilegiaram como momento forte de oração a vigília nocturna, a oração feita durante a noite, quer em grupo quer sozinho. A noite propícia esse encontro com Deus.
É de Isaac o Sírio, monge do século sétimo, a recomendação seguinte:
Ó homem, não consideres nenhuma obra monástica mais importante que a prática da oração de noite… O monge que persevera na vigília com um intelecto que sabe discernir, não parece revestido de carne, uma vez que em verdade esta obra pertence ao estado dos anjos. A alma que se afadiga e é exímia na prática das vigílias terá os olhos dos querubins, para que possa ver e perscrutar em todo o tempo as visões celestes.” (Alfeyev, L’Univers spirituel d’Issac le Syrien, 214)
Num outro contexto, e muito mais próximo de nós, é da forma seguinte que Etty Hilesum relata um dos seus momentos de oração nocturna, pouco antes de ser conduzida a uma campo de concentração.
São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia tem já a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência.” (Hillesum, Diário 1941-1943, 251)
E nós continuamos a preencher as nossas noites com as imagens da caixa mágica, a fugir desse encontro e dessa experiência que nos pode transformar os olhos em olhos de querubins. Que saibamos e procuremos buscar pelo menos um momento, um pouco de tempo, para no escuro, de olhos abertos, ver as estrelas ou a vida divina que por elas perpassa e nos toca.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Meditação que partilha connosco é profundo, intemporal e muito belo. Citando o Evangelho de hoje e a propósito da atitude de Jesus que escolhe o silêncio da noite e o isolamento para procurar a intimidade com o Pai, o Frei José Carlos recorda-nos que ...” Ao silêncio do monte ou do deserto acresce o silêncio da noite.”… O silêncio da noite para muitos de nós é o silêncio de eleição para muitas actividades que nos facilita a concentração, a descoberta, a leitura, a escrita, o reencontro connosco, mas também como nos diz …”A noite propícia esse encontro com Deus.”…
    Façamos nossas as palavras com que conclui, Frei José Carlos, a Meditação: …”saibamos e procuremos buscar pelo menos um momento, um pouco de tempo, para no escuro, de olhos abertos, ver as estrelas ou a vida divina que por elas perpassa e nos toca.”
    Obrigada pela partilha e por nos exortar a procurar e a viver no silêncio da noite, a intimidade com o Pai. Bem-haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva
    P.S. Permita-me que cite e partilhe um poema do Frei José Augusto Mourão, OP

    Visita da noite


    Visita da noite, alumia-nos!/traço de mão de anjo sobre a porta,/acorda-nos!/

    ilumine-nos a luz coada das estrelas/e saborearemos a alegria/da noite quase transparente,/não a noite da palavra obscurantista/

    não se extingam as estrelas/nem o filantropismo suceda/à c(l)aridade das mãos/invisivelmente (des)atadas/

    pense-nos o teu lado,/as feridas abertas do imaginário sem freio,/pastor que guardas a porção de terra/apenas entrevista,/junta ao nosso passo a tua bênção,/a tua misericórdia e a tua água

    (In, “O Nome E A Forma”, Pedra Angular, 2009)

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