domingo, 24 de fevereiro de 2013

Homilia do II Domingo da Quaresma

Há oito dias atrás, no primeiro domingo da Quaresma foi-nos apresentado o momento em que Jesus foi tentado no deserto. Hoje, segundo domingo da Quaresma, somos confrontados com o momento da transfiguração.
No Evangelho de São Lucas, que seguimos nestes domingos, há igualmente um período de oito dias que precede a transfiguração. Oito dias medeiam o anúncio da morte de Jesus, com o choque que tal anúncio acarreta, e o momento da transfiguração.
Estamos assim, numa e noutra circunstância, no ritmo das leituras da Quaresma e no caminho de Jesus com os discípulos, face a um acontecimento que tem esse objectivo último de animar, de fortalecer a caminhada, de oferecer um sinal de esperança face a tantos sinais contraditórios.
Neste sentido, não podemos deixar de imaginar o impacto das palavras de Jesus junto dos discípulos, do escândalo, de que os próprios Evangelhos nos dão conta, quando nos narram que Pedro tentou dissuadir Jesus do inevitável.
Não podemos deixar também de assumir o impacto que a narração das tentações de Jesus tem na nossa vida, como o confronto com esse acontecimento nos deixa muitas vezes desanimados, pois pensamos que se até Jesus foi tentado o que não acontecerá connosco e onde encontraremos forças para resistir.
É face a estes impactos, e aos problemas que eles podem causar e causaram junto dos discípulos, que Jesus se retira para um alto do monte para rezar. Jesus recorre assim ao grande elemento simbólico da montanha para conduzir os discípulos ao encontro com Deus, ao encontro com a vontade de Deus.
Este elemento simbólico é depois reforçado com o aparecimento de Moisés e Elias, duas figuras tutelares da tradição judaica que representavam na fé e no imaginário relações muito especiais com Deus, de grande intimidade, e cujos desaparecimentos estavam envoltos em um certo mistério. A incompreensibilidade da morte de Jesus pode começar assim a dissipar-se à luz do mistério de Moisés e Elias.
Esta dissipação é igualmente reforçada pela atitude que Jesus toma e que o pequeno grupo selecto dos discípulos pode contemplar. No alto do monte e num momento de oração, Jesus transfigura-se, muda de aparência, pois São Lucas não usa nunca a palavra transfiguração para falar do sucedido, como acontece com São Mateus.
Perante tal alteração os discípulos podem contemplar que a vida e a morte de Jesus já anunciada não são algo de estranho, desastroso, mas são reflexo consequente de uma intimidade, de uma relação tão pessoal e tão intensa que tem essa mesma capacidade de iluminar e transfigurar, de dar uma outra dimensão e luz aos acontecimentos, mesmo aos mais trágicos.
Face às dificuldades que se perspectivam, Jesus mostra aos discípulos e a cada um de nós que a intimidade com Deus, a nossa relação de fé e a oração podem de facto iluminar os nossos sofrimentos, os nossos desastres, podem conduzir-nos à vitória sobre as tentações, sejam elas de que espécie for.
É nesta circunstância, neste momento, que Pedro nos mostra, uma vez mais, a incompreensão dos discípulos, a dificuldade em perceberem o que se passava e estava em jogo. A proposta de Pedro para a construção de três tendas é um completo equívoco face ao que podem contemplar, pois não estão ainda no paraíso, como os elementos parecem indicar, mas testemunham de um diálogo em que a questão fundamental é uma libertação, é um êxodo que Jesus tem que operar e do qual eles vão participar.
A transfiguração de Jesus diante dos discípulos é assim um momento de visibilidade e de luz, de conforto face aos medos, mas é igualmente um momento de trevas, de invisibilidade, de cegueira. A transfiguração é um momento de ver, mas também um momento de ocultação, e por isso Moisés e Elias se retiram face à proposta de Pedro.
E esta duplicidade de situações, este equívoco, é extremamente importante para nós, vem afinal ao encontro das nossas necessidades, uma vez que nos retira do imediato e sensível, do visível, e nos coloca, como colocou os três discípulos, na órbita da Palavra.
Face à impossibilidade da contemplação da glória de Deus, da sua apreensão ou retenção, como desejava Pedro quando se oferece para construir três tendas, Deus vem ao nosso encontro através da Palavra feita carne, da oferta de Jesus Cristo seu eleito.
Assim sendo, a verdadeira tenda para o acolhimento de Deus é a nossa humanidade, é a nossa história, na qual pela intimidade com Deus, pela nossa filiação divina, podemos perceber como afinal Deus vai caminhando connosco, vai revelando pequenas maravilhas da eternidade.
A transfiguração de Jesus no monte Tabor é um convite à transfiguração do nosso quotidiano, ao encontro nas nossas realidades humanas e históricas da presença e acção de Deus, e de modo particular naquelas que nos podem parecer completamente alheias ou estranhas à ideia de Deus como foi a paixão e morte de Jesus.
Procuremos pois acolher com firmeza e fidelidade a Palavra do Pai na nossa humanidade, para que, como nos diz São Paulo, o nosso corpo miserável se transforme no corpo glorioso que nos foi possível vislumbrar na transfiguração de Jesus.
 
Ilustração: Ícone Bizantino da Transfiguração, Museu do Louvre.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Li com muito interesse este texto maravilhoso do Evangelho de São Lucas,muito profundo,as suas palavras são imprescindíveis,ricas de sentido que nos ajudam à nossa reflexão pessoal.Obrigada,Frei José Carlos,por esta beleza de partilha que muito gostei,e também pela sua bela ilustração.Que o Senhor o ilumine o ajude e abençoe.Um bom domingo e bom descanso.Votos de uma boa semana.Bem-haja.
    Um abraço fraterno.
    AD

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  2. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia do II Domingo da Quaresma que teceu é de grande espiritualidade e profundidade que nos ajuda a interpretar o momento da transfiguração cheia de simbolismos e o significado deste acontecimento nas nossas vidas. Como precisamos, Frei José Carlos, frequentemente, afastar-nos dos ruídos e do lodo deste mundo, subir à montanha e escutar a palavra de Jesus, para regressar ao quotidiano e ver o invísivel, ter o discernimento de ver mais além, sermos capazes de libertar-nos do que nos faz tropeçar, para renovar-nos e continuarmos a caminhada com Jesus que não nos abandona. Tal como aconteceu a Pedro e aos outros discípulos, só depois da manhã de Páscoa, somos capazes de ouvir a Palavra de Deus e ler cada um dos rostos do nosso semelhante sem o julgarmos ainda que pensemos de forma diferente.
    Saber escutar Jesus como pediu o Pai implica que saibamos escutar-nos uns aos outros em profundidade. Sabemos que não é fácil mas faz parte da casa de partida para participarmos na construção de um mundo melhor.
    Permita-me, Frei José Carlos, que transcreva alguns excertos do texto que elaborou, que me tocam e ajudam a reflectir.
    …” Não podemos deixar também de assumir o impacto que a narração das tentações de Jesus tem na nossa vida, como o confronto com esse acontecimento nos deixa muitas vezes desanimados, pois pensamos que se até Jesus foi tentado o que não acontecerá connosco e onde encontraremos forças para resistir.
    É face a estes impactos, e aos problemas que eles podem causar e causaram junto dos discípulos, que Jesus se retira para um alto do monte para rezar. Jesus recorre assim ao grande elemento simbólico da montanha para conduzir os discípulos ao encontro com Deus, ao encontro com a vontade de Deus.(…)
    (…)Face às dificuldades que se perspectivam, Jesus mostra aos discípulos e a cada um de nós que a intimidade com Deus, a nossa relação de fé e a oração podem de facto iluminar os nossos sofrimentos, os nossos desastres, podem conduzir-nos à vitória sobre as tentações, sejam elas de que espécie for.(…)
    (…)A transfiguração é um momento de ver, mas também um momento de ocultação, e por isso Moisés e Elias se retiram face à proposta de Pedro.
    E esta duplicidade de situações, este equívoco, é extremamente importante para nós, vem afinal ao encontro das nossas necessidades, uma vez que nos retira do imediato e sensível, do visível, e nos coloca, como colocou os três discípulos, na órbita da Palavra. (…)
    (…)Assim sendo, a verdadeira tenda para o acolhimento de Deus é a nossa humanidade, é a nossa história, na qual pela intimidade com Deus, pela nossa filiação divina, podemos perceber como afinal Deus vai caminhando connosco, vai revelando pequenas maravilhas da eternidade.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, que nos conduz a sair de nós próprios, a procurar ir mais além, a sermos a verdadeira tenda do Senhor, dispostos a acolhê-Lo, por exortar-nos … a ” acolher com firmeza e fidelidade a Palavra do Pai na nossa humanidade, para que, como nos diz São Paulo, o nosso corpo miserável se transforme no corpo glorioso que nos foi possível vislumbrar na transfiguração de Jesus.”
    Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe.
    Bom descanso. Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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