domingo, 13 de fevereiro de 2011

Homilia do VI Domingo do Tempo Comum

As leituras do Livro de Ben Sirá e do Evangelho de São Mateus deixam-nos neste domingo desafios radicais, mas que são básicos em qualquer projecto ou compromisso de seguimento de Jesus e fidelidade à Aliança com Deus.
Assim, não podemos de maneira nenhuma escamotear ou sublimar a afirmação que o sábio Bem Sirá faz, porque de facto, se quisermos guardar os mandamentos, se quisermos ser fiéis, temos que aplicar e envolver a nossa vontade. Não há qualquer força estranha ou externa que nos possa obrigar, é de nós que depende a adesão e a opção.
E este exercício da vontade torna-se ainda mais premente na medida em que, como nos diz Bem Sirá e várias outras passagens da Sagrada Escritura, Deus colocou diante de nós o caminho do bem e o caminho do mal, a vida e a morte, e portanto cabe-nos a nós, na nossa liberdade, na liberdade que Deus nos deixa, optar por qualquer um deles, sabendo que cada um tem o seu fim e as suas consequências.
Na revelação do monte Sinai, quando Deus entrega os mandamentos a Moisés e ao povo assume que eles são instrumentos para a prossecução do bem, são ajudas na orientação, ainda que caiba ao povo segui-los ou não, procurar esse fim vital a que conduzem ou optar por uma outra realidade cujas consequências serão da responsabilidade própria.
Assim, perante isto e face à missão reconciliadora do Filho de Deus no mistério da sua encarnação, não podemos estranhar que Jesus tenha dito aos seus discípulos que não tinha vindo revogar a lei e os profetas, mas bem pelo contrário, que tinha vindo para os aperfeiçoar, para os completar. Porque se os mandamentos eram um caminho, um roteiro de caminhada, não podiam ser revogados, eliminados, apenas de facto aperfeiçoados e completados, melhorados.
Ao dizer isto Jesus não quer de maneira nenhuma multiplicar os mandamentos, acrescentar outros aos já existentes, porque de facto o povo estava já oprimido por um conjunto de preceitos que não tinham em nada ajudado à fidelidade. Jesus tem consciência que é necessário voltar à essência, ao decálogo, e não multiplicar os preceitos ou mandamentos, porque não é essa multiplicação que conduzirá à fidelidade e ao amor. Uma vez mais nos deparamos com a necessidade da vontade e do compromisso interior, é na liberdade pessoal que fazemos a opção de seguir e fazer o bem, não é por preceitos exteriores.
As palavras de Jesus são desta forma um anúncio de um salto qualitativo, de um novo olhar sobre o que eram os mandamentos dados por Deus ao povo no monte Sinai, e por isso no conjunto de exemplos que aponta como modelos de aperfeiçoamento encontramos uma realidade intrínseca a todos e fundamental a todo o nosso existir, que é a relação. Somos seres relacionais, em todos os sentidos e dimensões.
Assim, Jesus aponta a ira e a cólera como formas de homicídio porque de facto elas conduzem à morte, atentam já contra a dimensão física do outro, dimensão sem a qual não há relação possível. Também o insulto é merecedor de condenação, porque de cada vez que chamamos imbecil ou louco ao outro estamos a atentar contra sua dignidade e a sua vida psíquica, obstruindo a sua possibilidade de relação sadia e sem complexos.
Por outro lado quando alguém deseja o outro já comprometido, seja homem ou mulher, está de alguma forma a quebrar, ou a desejar quebrar, a relação que esse outro mantém com alguém. Interfere, ou interferiria se houvesse oportunidade, na relação que os outros mantém. E também o repúdio se encaixa neste âmbito porque ao cometê-lo interfere-se numa dimensão essencial que é a da estabilidade em qualquer relação.
Por fim quando Jesus no diz que a nossa linguagem deve ser sim ou não remete-nos para a confiança que nos merecemos e nos devemos uns aos outros e que o juramento coloca em causa, pois advoga sempre uma realidade externa e terceira que nos é estranha e não nos compromete na nossa responsabilidade.
A realidade íntima fundamental dos mandamentos é assim descoberta, ou revalorizada, pois damo-nos conta que todos os mandamentos da lei de Deus conduzem à relação, a essa realidade sem a qual não há ser humano, não há homem nem mulher, não há nem sequer criatura, porque também ela existe em relação.
Neste sentido, e como somos seres em relação com Deus, Jesus termina por nos alertar para a necessidade de uma relação com Ele transparente, verdadeira, na qual os outros também estão incluídos. Por isso nos recomenda a deixar a nossa oferta diante do altar e a reconciliar-nos com os irmãos antes de a apresentarmos. Se não amamos os nossos irmãos que vemos como poderemos amar a Deus que não vemos. Como poderemos querer ou viver uma relação com Deus quando não a mantemos com aqueles que estão mais próximos?
A proposta que Jesus hoje nos deixa no Evangelho, no seguimento das Bem-Aventuranças e do convite a sermos sal da terra e luz do mundo dos domingos passados, vai no sentido da conversão das nossas relações, de percebermos a radicalidade da relação como fundamento de todo o mandamento da lei de Deus, de todo o projecto de Aliança com Deus, de todo o desejo de seguimento de Jesus.
E como nos diz São Paulo na Carta aos Coríntios esta é uma sabedoria que não é deste mundo, que também não é dos perfeitos, que nos ultrapassa e por vezes se nos torna difícil perceber, mas que nos está destinada desde o princípio do mundo; pelo que nos resta aplicar a nossa vontade na sua busca e na sua demanda a Deus.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Obrigada pela partilha do longo e profundo texto que preparou para a Homilia do VI Domingo do Tempo Comum, ajudando-nos na interpretação das leituras e do Evangelho de São Mateus. Como bem nos recorda Jesus disse aos seus discípulos “que não tinha vindo revogar a lei e os profetas, mas bem pelo contrário, que tinha vindo para os aperfeiçoar, para os completar” e que o seguimento dos mandamentos depende de nós, das nossas opções. Somos livres, nada nos é imposto, e consequentemente, responsáveis pelas escolhas que fazemos (fizemos).
    Permita-me que transcreva alguns excertos do texto que o Frei José Carlos escreveu e que me sensibilizam particularmente.
    ...” Uma vez mais nos deparamos com a necessidade da vontade e do compromisso interior, é na liberdade pessoal que fazemos a opção de seguir e fazer o bem, não é por preceitos exteriores.
    As palavras de Jesus são desta forma um anúncio de um salto qualitativo, de um novo olhar sobre o que eram os mandamentos dados por Deus ao povo no monte Sinai, e por isso no conjunto de exemplos que aponta como modelos de aperfeiçoamento encontramos uma realidade intrínseca a todos e fundamental a todo o nosso existir, que é a relação. Somos seres relacionais, em todos os sentidos e dimensões”. (…)
    ...” A realidade íntima fundamental dos mandamentos é assim descoberta, ou revalorizada, pois damo-nos conta que todos os mandamentos da lei de Deus conduzem à relação, a essa realidade sem a qual não há ser humano, não há homem nem mulher, não há nem sequer criatura, porque também ela existe em relação.
    Neste sentido, e como somos seres em relação com Deus, Jesus termina por nos alertar para a necessidade de uma relação com Ele transparente, verdadeira, na qual os outros também estão incluídos. (…)Se não amamos os nossos irmãos que vemos como poderemos amar a Deus que não vemos. Como poderemos querer ou viver uma relação com Deus quando não a mantemos com aqueles que estão mais próximos?”
    Que Jesus nos abençõe e nos guie na escolha do caminho da paz, da verdade e do bem e peçamos ao Senhor que nos ajude a observar a coerência quotidiana das palavras, dos pensamentos e das acções, amando os outros, o nosso próximo, como Jesus nos amou e nos ama.
    Bem haja Frei José Carlos por nos interrogar, levando-nos a uma outra forma de exame de consciência, ao repensar das nossas escolhas, no largo espectro das nossas fragilidades, nas nossas circunstâncias, sem dramas, encarando a realidade, com a vontade de melhorar no nosso peregrinar.
    Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno
    Maria José Silva

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