O Evangelho de São Mateus deste domingo, numa leitura primária e quase literal, pode dar a ideia de uma crítica feroz ao dinheiro, a essa realidade hoje em dia tão incontornável e inquestionável como o era já no tempo de Jesus. Todos nos servimos do dinheiro e podemos até em muitas circunstâncias servir o dinheiro.
Contudo, não podemos ficar nesta leitura primária e básica, nesta critica ao dinheiro, porque de facto não é esse o objectivo de Jesus. Como em muitas outras realidades o que preocupa Jesus, no que nos desafia, não é na materialidade da questão, mas na relação que estabelecemos, na forma como nos relacionamos com as coisas, e de que o dinheiro aparece como realidade exemplar.
As palavras de Jesus “não podeis servir a Deus e ao dinheiro” são assim, e na profundidade da sua dimensão, a denúncia de uma dupla idolatria que nos afecta, e que se encontram intimamente relacionadas, a idolatria do dinheiro que se gera e acontece por causa da idolatria do Deus ausente e distante.
Encontramos esta idolatria de Deus distante e ausente no texto que escutámos do profeta Isaías, nessa crítica ou queixa de que Deus se esqueceu de nós e nos abandonou, e que Jesus reflecte também quando nos interroga sobre as nossas necessidades e preocupações com o vestir e com o comer. A nossa preocupação com as realidades temporais e a sua satisfação, a nossa segurança face ao futuro e a qualquer imprevisto, denuncia essa ideia de um Deus distante, um Deus ausente e sem qualquer preocupação para connosco.
Esta idolatria desenvolve-se no homem a partir do momento da primeira queda, quando os nossos desejos insaciáveis levaram à desobediência e ao afastamento da intimidade de Deus. A partir daí, separados de Deus, passámos a viver com o medo, o medo do futuro, o medo do outro, o medo da doença e até o medo de nós próprios, do desconhecido que somos. A partir daí passámos também a viver em competição com Deus, considerando que Deus era o rival da nossa felicidade, do nosso bem-estar e satisfação.
O Deus que nos criou e nos ama tornava-se assim um ídolo monstruoso, que não só estava em competição connosco, mas ao qual também tínhamos que sacrificar os nossos melhores bens, a nossa alegria e felicidade. Esta era e é a imagem adulterada de Deus, que o mestre da mentira nos tinha incutido e ainda incute e com a qual nos relacionamos de uma forma doentia e sádica.
Por causa dela procurámos a satisfação e a felicidade noutro deus e desenvolvemos a idolatria do dinheiro, porque afinal ele alcançava-nos essa satisfação que buscávamos, dava-nos o poder que desejámos, aquilo que de outra forma não poderíamos ter e até a glória diante dos outros que tínhamos perdido diante de Deus. Com o dinheiro buscamos a segurança que nos falta, os amigos que nos colmam a falta do outro, a garantia de um futuro que tantas vezes é imprevisível.
As palavras de Jesus são também uma denúncia de uma duplicidade e de uma esquizofrenia que não nos levará a lado nenhum, de um conflito interior que não poderemos continuar a manter porque nos destruirá e destruirá tudo à nossa volta, pois inevitavelmente projectamos para o nosso ambiente as divisões e as lutas que transportamos em nós.
As palavras de Jesus são desta forma uma terapia, uma cura para esta nossa divisão interna, para esse conflito de duplas pertenças contraditórias, uma libertação da escravidão a que nos submetemos para tentar compensar a perda da relação mais fundamental de todo o homem que é a relação com Deus e com a sua generosidade.
Face a isto Jesus não nos pede um afastamento do mundo, uma recusa do dinheiro na sua materialidade e enquanto mecanismo de troca e remuneração; o que Jesus nos pede e nos desafia é sobre a forma como nós nos relacionamos com esse meio, com esse produto. Jesus recusa e pede que nos recusemos a servir o dinheiro no sentido da subserviência, da escravidão a que lhe votamos a nossa vida e felicidade.
E aqui há realmente um discernimento a fazer, uma avaliação, porque nos devemos questionar e saber se as nossas buscas de dinheiro, de lucro, de rentabilidade, estão ao serviço da construção da vida, de uma qualidade de vida que passa em muito para além do material, ou se pelo contrário nos estamos a escravizar a uma pretensa imagem de vida e satisfação que não tem nada de satisfatório e muito menos de vida em qualidade.
Que o Senhor ilumine o nosso coração e a nossa inteligência para perceber o quanto basta a cada dia e que Deus está ao nosso lado, nunca nos abandonando, pois nunca se esquece de nós ainda que nós nos esqueçamos dele.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarA Homilia que preparou para o VIII Domingo do Tempo Comum e que partilha connosco ajuda-nos na interpretação do Evangelho de São Mateus deste domingo e leva-nos a reflectir sobre a nossa relação com as coisas materiais das quais o dinheiro faz parte e sobre a qualidade da nossa vida espiritual, da nossa relação com Deus, na verdadeira vida cristã.
Como o Frei José Carlos afirma no texto ...” A nossa preocupação com as realidades temporais e a sua satisfação, a nossa segurança face ao futuro e a qualquer imprevisto, denuncia essa ideia de um Deus distante, um Deus ausente e sem qualquer preocupação para connosco.
Esta idolatria desenvolve-se no homem a partir do momento da primeira queda, quando os nossos desejos insaciáveis levaram à desobediência e ao afastamento da intimidade de Deus. A partir daí, separados de Deus, passámos a viver com o medo, o medo do futuro, o medo do outro, o medo da doença e até o medo de nós próprios, do desconhecido que somos.”(…)
…”Jesus não nos pede um afastamento do mundo, uma recusa do dinheiro na sua materialidade e enquanto mecanismo de troca e remuneração; o que Jesus nos pede e nos desafia é sobre a forma como nós nos relacionamos com esse meio, com esse produto”…
Que Deus nos ajude a viver de forma equilibrada e solidária os bens materiais, elevando a nossa fé no amor e protecção que Nos dedica, encorajando-nos a entregrar-nos nas Suas mãos e a servi-Lo.
Permita-me que termine rezando a oração que nos deixa ...” Que o Senhor ilumine o nosso coração e a nossa inteligência para perceber o quanto basta a cada dia e que Deus está ao nosso lado, nunca nos abandonando, pois nunca se esquece de nós ainda que nós nos esqueçamos dele”.
Obrigada por esta profunda partilha que nos esclarece e questiona. Bem haja.
Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana.
Um abraço fraterno
Maria José Silva