Damos início ao Tríduo Pascal com a celebração da Ceia do Senhor, um mistério de cuja amplitude São João nos dá uma ideia desde o primeiro momento da leitura do seu Evangelho, “Ele que amara os seus amou-os até ao fim”. E este amor, total, aparece-nos expresso no gesto que Jesus realiza nessa mesma ceia que recordamos e comemoramos, a lavagem dos pés aos discípulos.
Um gesto que, como nos diz São João, não acontece porque os discípulos não tenham cumprido as abluções rituais habituais, de que foram acusados em outras situações semelhantes de refeição pelos fariseus. Não se trata de uma questão de higiene, mas de um gesto carregado de significado, de educação e ensinamento quanto àquele que lava os pés e quanto àqueles aos quais os pés são lavados.
Assim, vemos que Jesus que preside à mesa e à refeição se levanta do seu lugar de chefe, de anfitrião e se prepara para lavar os pés aos discípulos sentados à mesma mesa. Jesus levanta-se do seu lugar e abdica da sua dignidade tal como já tinha feito no momento da encarnação, do seu abaixamento da condição divina à condição humana.
Para reforçar ainda mais este abaixamento, e a aniquilação total que iria sofrer, Jesus retira a sua túnica, coloca-se quase como um escravo nu diante daqueles a quem vai servir. É a sua própria condição humana que vai ser despojada de dignidade, a sua vida que vai ser entregue, despida como aquela roupa.
E com uma toalha à cintura, começou a lavar os pés aos discípulos num gesto humilde e que competia aos escravos realizar. Uma vez mais Jesus assume a condição humilhante do servo, daquele que não é nada para se fazer tudo para todos. E a toalha à cintura é como a justiça que envolve os rins do rei, bem justa mas colocada para ser exercida com uma força que nasce nas próprias entranhas.
Perante tal situação, face a tal humilhação Pedro recusa o gesto de Jesus, não é digno de um Mestre, de alguém que ele reconhece como Senhor. Pedro sabe e conhece, ainda que de modo imperfeito, a dignidade da pessoa que tem diante de si, da pessoa que se despojou da sua roupa e honra para se colocar a exercer aquele gesto humilhante e indigno.
Pedro recusa o caminho de humildade de Jesus, recusa aceitar que o seu Mestre, aquele por quem ele tinha deixado as redes e o barco junto ao lago, se coloque naquela posição, naquela atitude tão indigna. Nada daquilo se enquadra nas suas expectativas, mesmo naquelas que pareciam periclitantes face ao perigo de vida e a tanta incerteza quanto ao futuro.
E é neste sentido que a atitude de Pedro se aproxima de tantas das nossas expectativas, das nossas imagens um tanto ou quanto dispares relativamente à realidade e verdade de Jesus Cristo. Também muitas vezes nós queremos um Jesus de acordo com as nossas necessidades, as nossas pretensões, as nossas expectativas de realização e satisfação e Jesus revela-se diferente, outro, totalmente outro.
E neste confronto de imagens e realidades acabamos também por nos encontrar connosco próprios e as nossas imagens de glorificação, com as imagens que construímos de nós próprios mas se distanciam da verdade real que somos. E por isso nos revoltamos, nos recusamos tantas vezes também a permitir que Jesus nos lave os pés e nos purifique dessa idolatria pessoal.
Mas Jesus não desiste, de lavar os pés a Pedro e de o fazer participar da sua vida e da sua glória, bem como a nós de nos assumirmos num processo de conversão, de alteração das nossas imagens de Deus e de nós próprios.
Então Pedro quer tudo, não só que Jesus lhe lave os pés, mas também todo o corpo, como se necessitasse de um banho completo. Pedro entusiasma-se uma vez mais pelo projecto e pela palavra de Jesus, pela sua promessa de tomar parte, ainda que seja um entusiasmo que necessita ser purificado porque as razões do seu querer não são ainda as mais puras, as que se adequam à realidade de que Jesus está a falar.
Terminada a lavagem dos pés, Jesus retoma o seu lugar e a sua dignidade e uma vez mais a palavra para explicar aos discípulos o sentido de tudo o que lhes tinha feito. E é aqui que percebemos que há verdadeiramente um abismo entre o gesto de Jesus e a possibilidade de também nós o repetirmos.
As nossas lavagens de pés, nas suas mais diversas acepções possíveis, serão sempre uma pálida imagem daquilo que Jesus realizou, porque como Jesus diz é pelo facto de ser Mestre e Senhor que pode e pôde realizar aquele gesto. Ainda que humilhante e indigno da sua pessoa, em nada o diminuiu, em nada o prejudicou, porque não só significa toda a sua vida, mas sobretudo porque significa o amor que lhe presidiu.
É porque Jesus é Senhor e Mestre no amor que a sua humilhação, o seu abaixamento e aniquilação não o atinge, não prejudica nem afecta na sua glória, na sua honra e na sua divindade. Ele tudo fez e faz por amor daqueles que são os amigos que o Pai lhe confiou.
Neste sentido temos que aceitar com humildade que os nossos gestos de serviço e caridade são apenas um reflexo, um pálido reflexo do que Jesus operou, e que não está na nossa mão mudar o mundo. Contudo, e ainda assim, quanto maior for o nosso amor, quanto mais nos entregarmos nos nossos gestos de lavagem de pés, de conforto e dignificação do próximo, mais nos aproximamos do amor de Jesus e mais nos tornamos também participantes da sua parte, do seu reino.
Que o Espírito Santo nos ilumine nos caminhos de conversão que necessitamos realizar bem como nos gestos de fraternidade e entrega.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarVolto a ler e medito de novo no Evangelho de São João (13,1-15) e no profundo significado do texto que elaborou e que connosco partilha. Ao contemplarmos a lavagem dos pés aos discípulos e o seu significado, mais que uma lição de humildade de Jesus, Senhor e Mestre, é um gesto que simboliza o serviço ao outro, a antecipação da humilhação total que sofrerá para salvar a humanidade, mas também de purificação.
Como nos recorda ...”Pedro recusa o caminho de humildade de Jesus, recusa aceitar que o seu Mestre, (…) se coloque naquela posição, naquela atitude tão indigna. (…)
…”Também muitas vezes nós queremos um Jesus de acordo com as nossas necessidades, as nossas pretensões, as nossas expectativas de realização e satisfação e Jesus revela-se diferente, outro, totalmente outro.”
Cada um de nós, Frei José Carlos, à sua maneira, temos um pouco de Pedro, de Judas. Não é com facilidade que abdicamos dos nossos privilégios, de servirmos o outro, sem nada esperarmos em troca. E se o fazemos, somos, quase sempre, mal interpretados.
E como nos diz ...” É porque Jesus é Senhor e Mestre no amor que a sua humilhação, o seu abaixamento e aniquilação não o atinge, não prejudica nem afecta na sua glória, na sua honra e na sua divindade. Ele tudo fez e faz por amor daqueles que são os amigos que o Pai lhe confiou.
Neste sentido temos que aceitar com humildade que os nossos gestos de serviço e caridade são apenas um reflexo, um pálido reflexo do que Jesus operou, e que não está na nossa mão mudar o mundo.”…
Saibamos aceitar o convite de Jesus para segui-Lo, participando, assim, na construção de um mundo mais fraterno, mais solidário, mais justo.
Obrigada Frei José Carlos por esta profunda partilha que nos leva a clarificar os nossos limites. Bem haja.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva