Neste quarto domingo da Quaresma, também conhecido como Domingo Laetare, domingo da alegria, pois chegámos já a meio do caminho para a Páscoa, encontramos na leitura do Evangelho a narração da cura do cego de nascença, uma leitura que se estende a todo o capítulo nono do Evangelho de São João.
É uma narração cheia de peripécias, muito dinâmica, parecendo quase uma representação de teatro na qual os actores entram e saem de cena com uma rapidez quase estonteante, deixando-nos à beira da dúvida sobre o sentido deste texto no Evangelho de São João que habitualmente consideramos muito místico, espiritual, ou teológico.
Mas é esta sua dimensão teológica, a complexidade narrativa e construtiva, a carga histórica que encerra, que permite a presença de textos como este, tão dinâmicos e tão cheios de novidade evangélica. Afinal toda a história e todos os diálogos narrativos servem o objectivo patenteado logo no Prólogo do Evangelho quando nos é dito que “a Luz brilhou nas trevas mas as trevas não a receberam”.
E vemos isso desde o primeiro momento do relato quando o evangelista nos diz que foi Jesus que reparou no cego de nascença. A iniciativa da cura parte assim de Jesus, sem qualquer pedido ou busca por parte daquele que padecia da enfermidade. E tal como acontece com o cego assim acontece com a história da salvação, porque é de Deus que nasce a iniciativa da redenção através do mistério da encarnação.
Face à chamada de atenção de Jesus e ao mal patente, visível, os discípulos procuram uma explicação para a situação, a causa da cegueira, remetendo para o passado e para qualquer acção pecaminosa que o cego ou os seus antepassados tivessem cometido. Era normal, era a forma consentânea de pensar, de encontrar uma explicação, porque tudo tinha uma origem, e à luz da concepção religiosa o bem ou mal eram sempre fruto de uma bênção ou de uma maldição.
Ao contrário dos discípulos Jesus esquece o passado, remete-o para a sua mesma situação e apresenta o presente e o futuro, o dia em que se encontra para dar a luz à humanidade e manifestar o dom da misericórdia de Deus com a entrega do Filho às mãos dos homens. Não é no passado que se encontra a solução daquela cegueira, mas no futuro, nessa nova criação e nova humanidade nascida do lado aberto no corpo preso à cruz.
Antecipando e prefigurando a nova criação, o novo mundo e a nova humanidade, Jesus toca o cego com a lama feita do pó da terra e da sua própria saliva. É uma nova obra, fruto das suas mãos, da sua palavra criadora simbolizada na saliva, também símbolo da encarnação, desse mistério do filho de Deus nascido filho do homem. E para que a nova criação, o milagre possa ter um referente identificável da promessa feita ao povo, o cego é enviado a lavar-se na piscina de Siloé, ou seja na piscina do enviado, daquele que há-de ser enviado. É o banho regenerador nas águas primordiais, nas águas que no dilúvio lavaram a terra de toda a abominação e idolatria, nas águas sobre as quais pairava o Espírito que dá vida.
Acontecido o milagre, a cura do cego que agora todos reconhecem como vendo, gera-se a discussão, a procura de uma explicação para a possibilidade do como, porque não há maneira de negar a cura e o milagre, eles são evidentes, patentes aos olhos de todos, e portanto a necessidade premente é de reduzir a dimensão e o extraordinário do sucedido.
E nada melhor que aproveitar o dia em que tal foi feito, o sábado, o dia do descanso, o dia do Senhor, o dia em que estava proibido realizar um conjunto vasto de tarefas. O desrespeito por tal dia, ainda que para curar, mostrava uma não identificação com o espírito que presidia a esse dia e à sua criação. Esta concepção evidencia no entanto um sequestro da actividade de Deus, uma subjugação do seu poder ao tempo e aos critérios, que Jesus por diversas vezes mostrou que não era possível, não era compatível com a força criadora de Deus. E neste milagre do cego de nascença evidencia que mais que um tempo de paragem ou ausência, de descanso de Deus, o sábado é um tempo, e deve ser um tempo, para a recriação, para o recomeçar, para a possibilidade de um novo mundo.
Nesta discussão sobre a cura deparamo-nos de forma quase trágica com a recusa da realidade, porque mesmo explicando a forma como foi curado, o cego continua a esbarrar na obstinação da não aceitação, e sobretudo na obstinação da recusa do seu testemunho, da sua palavra. Por isso são chamados os pais para testemunhar e depois é solicitado um novo relato, que ele se recusa a dar porque se apercebe da falta de fé daquela gente, da sua obstinação em não ver o que era patente.
Colocando um final no acontecimento e na narração, e conduzindo-a ao seu objectivo, o evangelista João narra o encontro do cego com Jesus e a sua profissão de fé que evolui do reconhecimento do Filho do Homem para a adoração daquele que é o Senhor, o criador da sua nova vida, ao contrário dos fariseus que testemunham o encontro e sabem de toda a história mas são incapazes de abrir os olhos para a luz, pelo que permanecerão cegos à luz presente ainda que vejam tudo o que se passa.
Vemos assim como nesta narração e aproveitando esta cura de cegueira o evangelista constrói historicamente a manifestação da luz divina em Jesus Cristo e como essa manifestação foi recusada, foi liminarmente ignorada para não provocar alterações na situação individual e colectiva.
Vemos também o itinerário de todo o fiel, de todo o discípulo, que se encontra com o Senhor que vem ao seu encontro para o retirar das trevas, que dá testemunho desse encontro e da sua nova identidade e natureza, expondo-se a todos os perigos e inclusive à exclusão, e que à luz dessa experiência reconhece que o Filho do Homem é o seu Senhor e Salvador e portanto se prostra para o adorar. A luz manifestada é acolhida em vez de ser rejeitada.
Como baptizados em Jesus Cristo somos filhos da luz e estamos convocados a levar a sua luz a todos os homens e a todas as circunstâncias que necessitam ser iluminadas, não esquecendo como nos diz São Paulo que os frutos da luz são a bondade, a justiça e a verdade. Sempre que estas realidades se gerarem à nossa volta e por nossa intervenção podemos e devemos acreditar que estamos a ser fiéis, estamos a viver na luz e com a luz. Que o Senhor nos consolide na luz com que nos despertou.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarObrigada pela partilha da Homilia do IV Domingo da Quaresma e por nos ajudar na interpretação da simbologia do Evangelho de São João ( 9,1-41), o sentido da narração da cura do cego, a quem Jesus deu a visão e a luz espiritual.
Como nos diz na Homilia ...” E tal como acontece com o cego assim acontece com a história da salvação, porque é de Deus que nasce a iniciativa da redenção através do mistério da encarnação. (…)
Ao contrário dos discípulos Jesus esquece o passado, remete-o para a sua mesma situação e apresenta o presente e o futuro, o dia em que se encontra para dar a luz à humanidade e manifestar o dom da misericórdia de Deus com a entrega do Filho às mãos dos homens. Não é no passado que se encontra a solução daquela cegueira, mas no futuro, nessa nova criação e nova humanidade nascida do lado aberto no corpo preso à cruz.”
Que a nossa vida seja iluminada pela luz de Jesus Cristo, luz da bondade, da justiça e da verdade, de modo que as nossas múltiplas cegueiras desapareçam por forma a vermos, com humildade, a nossa própria realidade e a verdadeira realidade dos outros.
Peçamos juntamente com o Frei José Carlos “Que o Senhor nos consolide na luz com que nos despertou.”
Estamos gratos (as) pelo texto profundo e esclarecedor da Homilia que partilha connosco. Bem haja.
Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva