O Evangelho de São João, que lemos nesta celebração, conta-nos logo no primeiro capítulo que, depois do baptismo de Jesus no rio Jordão, dois discípulos de João Baptista foram ter com Jesus e lhe perguntaram onde morava. A resposta a esta pergunta foi, “vinde e vede”. E eles foram e, como nos diz São João, era a hora décima, a tarde caía e eles ficaram com Jesus.
Nesta celebração da Paixão de Jesus é-nos feito o mesmo convite, vinde e vede. À hora décima na qual Jesus jaz morto na cruz somos convidados a contemplar aquele que se nos apresenta despojado de qualquer poder e dignidade humana, mas nunca tão poderoso e magnifico na sua missão divina de redenção.
Fazendo jus às palavras de Pilatos “eis o homem”, Jesus apresenta-se na cruz na maior aniquilação, no maior abaixamento e despojamento possível. Depois da incarnação, de assumir o homem em toda a sua dimensão, experimenta a última e mais radical de todas as consequências do pecado do homem, a morte.
O Filho de Deus leva até ao extremo, até ao fim a sua experiência radical de humanidade, uma experiência marcada pela solidão total, porque no final das contas todos fazemos a experiência da morte e da finitude sozinhos, entregues a nós próprios, se não acreditarmos que por esta mesma cruz e morte Jesus vem ao encontro da nossa solidão para nos acompanhar.
Foi nesta solidão e no seu grito de angústia que Jesus sentiu a presença e a força do Pai e por isso o mesmo momento de morte e aniquilação pôde ser momento de salvação, o Pai veio ao encontro do seu amor desesperado.
Por outro lado o momento da cruz é também o momento da glorificação, no sentido da experiência total do dom do amor, do dom sem medida. Todos nós damos alguma coisa, por vezes é o tempo, outras vezes é uma palavra, algumas vezes é a nossa compaixão. Os pais dão sempre alguma coisa aos filhos e os amantes dão-se a si mesmos.
Contudo, a doação que Jesus faz na cruz supera todas as entregas e todas as doações, tudo o que podemos ou possamos oferecer uns aos outros, pois a entrega de Jesus é uma entrega total, completa, é uma entrega de vida por aqueles que não mereciam essa mesma vida.
Como nos diz São Paulo na Carta aos Romanos, “quando ainda éramos pecadores é que Deus provou o seu amor por nós entregando a sua vida”, quando não merecíamos qualquer sacrifício em virtude das nossas faltas. Mas Deus arriscou essa doação, esse dom porque não podia negar-se nem recuar na oferta que tinha iniciado com o mistério da incarnação.
E neste sentido vemos como a cruz é o grande momento de poder e magnificência de Deus porque é aí que ele se revela na sua alteridade e na sua diferença, no poder que mais ninguém podia assumir e ter, ou seja, de dar a sua vida pelos que não tinham vida para que a tivessem.
A celebração da Paixão de Jesus remete-nos assim e convida-nos a olhar para estas duas realidades e dimensões e a perceber como nelas estamos todos implicados no sentido do fruto alcançado e a alcançar. A redenção operada por Jesus alcança-nos a todos, faz-nos a todos herdeiros e filhos, mas também nos envolve no sentido da actualização do dom.
Não podemos portanto deixar de vir todos os anos e até mesmo todos os dias a este mistério da cruz, não podemos deixar de o contemplar, porque só dessa forma nos imbuiremos do dom do amor entregue e a pedir entrega.
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