domingo, 5 de fevereiro de 2012

Homilia do V Domingo do Tempo Comum

O trecho do Evangelho de São Marcos que escutámos coloca diante de nós a hipótese daquilo que seria o quotidiano da vida de Jesus naqueles três anos que medeiam entre o início da sua vida pública e a sua morte em Jerusalém.
Dias marcados por um ritmo alucinante em que a pregação se conjugava com os milagres e as curas, as paragens e a visita a casa dos amigos com uma deambulação pelas aldeias, as exigências da multidão frenética com o silêncio da oração isolada.
Um ritmo de vida que poderíamos dizer alucinante, muito próximo ou parecido com o nosso, com o que levamos nos tempos presentes, salvaguardadas as distâncias e as diferenças.
É neste ritmo, usando a expressão de Job, mais veloz que a lançadeira de um tear, que muitas vezes e frequentemente caímos no desânimo e no desespero, agitando-nos angustiados desde a manhã até à noite, como se a vida não passasse de um sopro.
Tudo nos parece vão e sem sentido, uma luta por qualquer coisa que no fundo não nos chega a satisfazer, a preencher as expectativas, em que nos sentimos como escravos ou mercenários lutando e trabalhando para outro alguém que verdadeiramente gozará do fruto do nosso trabalho ou luta.
Sentimentos que levam a questionar-nos sobre a felicidade e contrastam com as palavras de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, em que nos diz que se fez tudo para todos para ganhar alguns a todo o custo. Ou seja, o esforço e o aparente sem sentido pode revelar-se pleno de sentido e de razões, pode ser felicidade, se estiver presente o objectivo do Evangelho.
É interessante e extremamente importante ver que São Paulo parte para a apresentação da sua missão e do seu trabalho alucinante, da liberdade que tem para o fazer e da obrigação a que se sente chamado. A sua fé, o seu encontro com Jesus responsabiliza-o a anunciar, a proclamar o Evangelho de Jesus a todos e sem desfalecer. Essa é a sua obrigação. Contudo, fá-lo com total liberdade, sem esperança de qualquer reconhecimento ou compensação para além do próprio Evangelho que anuncia, da própria realidade a que se sente obrigado.
E à luz destas duas circunstâncias tudo ganha um novo sentido, tudo pode ser lucro ainda que aos olhos humanos e do mundo possa parecer uma humilhação, uma perda de tempo ou desperdício de energias. Há um extra que faz com que o sentido seja recuperado e transcendente ao imediato e visível.
Como cristãos, do relato do quotidiano de Jesus e do sentido que São Paulo confere a cada uma das coisas que realiza no seu quotidiano, derivam desafios e responsabilidades que não podemos deixar de assumir para que o nosso próprio quotidiano e as nossas actividades sejam recentradas na verdade da sua mesma existência.
Assim, não podemos esquecer que tal como Jesus estamos convocados a fazer o bem, a ajudar o outro, incluindo a “sogra” que pode estar doente. A caridade deve marcar a nossa atitude e postura face aos outros.
E como não é fácil, Jesus não deixou de nos dar o exemplo, nem de nos mostrar a fonte para superarmos essas dificuldades, a oração, essa oportunidade e momento de nos reencontrarmos com Deus, connosco próprios e com aqueles que nos rodeiam e as tarefas que temos que cumprir.
É na oração e a partir dela que as realidades adquirem uma nova dimensão, em que o fazer-se tudo para todos ganha sentido, porque ainda que os ganhos sejam poucos eles são sempre uma participação numa realidade maior e total, são sempre participações do activo da empresa, usando uma linguagem financeira.
Neste sentido pode ajudar-nos uma ideia que marca a espiritualidade ortodoxa, mormente dos “staretz” russos, e que podemos encontrar presente numa passagem do “Diálogo de Motovilov com Serafim de Sarov”, e que é a ideia da transfiguração.
Se Motovilov diz a Serafim de Sarov que não o pode olhar de caras porque ele brilha de luz, Serafim de Sarov responde a Motovilov que se o vê brilhar é porque também ele brilha.
Somos chamados a transfigurar-nos em luz para poder iluminar os outros e iluminar todas as realidades dessa mesma luz divina que partilhamos e usufruímos pela intimidade divina em que vivemos. E nessa luz, nesse processo de transfiguração, não há realidades sem sentido, ou angustiantes, porque mesmo a realidade mais pavorosa como a morte se transfigura em acolhimento nos braços do Pai.
Peçamos por isso ao Senhor que nos cative a frequentar a sua intimidade, a gozar da sua luz transfigurante, para que também nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz divina em tudo e em todos.

Ilustração: “Ícone da Transfiguração”, do Mosteiro Spaso-Preobrazhensky, Yaroslavl.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    A liturgia que escutámos neste V Domingo do Tempo Comum leva-nos a reflectir sobre o ser cristão, sobre a vida cristã, na nossa condição, na actualidade.
    O texto da Homilia que preparou conduz-nos a fazer o balanço da vida de alguns de nós vivida num ritmo em que ...” Tudo nos parece vão e sem sentido, uma luta por qualquer coisa que no fundo não nos chega a satisfazer, a preencher as expectativas …,” e conquanto digamos a vida não pode ser só isto, o facto de acreditarmos no projecto de trabalho que realizamos, o peso das responsabilidades, conduz-nos a situações de desânimo e desespero, porque nos deixámos enredar em situações difíceis de modificar. Por vezes, circunstâncias, acontecimentos que surgiram na caminhada que vamos fazendo e que não somos capazes de explicar com objectividade, conduziram a que fosse possível operar algumas modificações, pequenas transformações.
    Mas ao recordar-nos o contraste dos sentimentos de Job e de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, salienta-nos que o …” o esforço e o aparente sem sentido pode revelar-se pleno de sentido e de razões, pode ser felicidade, se estiver presente o objectivo do Evangelho”. (…) “Há um extra que faz com que o sentido seja recuperado e transcendente ao imediato e visível.”…
    E indica-nos uma forma para ultrapassar a incoerência da nossa forma de ser e de estar como cristãos …” E como não é fácil, Jesus não deixou de nos dar o exemplo, nem de nos mostrar a fonte para superarmos essas dificuldades, a oração, essa oportunidade e momento de nos reencontrarmos com Deus, connosco próprios e com aqueles que nos rodeiam e as tarefas que temos que cumprir.
    É na oração e a partir dela que as realidades adquirem uma nova dimensão, em que o fazer-se tudo para todos ganha sentido, porque ainda que os ganhos sejam poucos eles são sempre uma participação numa realidade maior e total”…
    Façamos nossas as palavras de Frei José Carlos …” Peçamos por isso ao Senhor que nos cative a frequentar a sua intimidade, a gozar da sua luz transfigurante, para que também nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz divina em tudo e em todos.”
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, importante, que nos consola, fortalece e dá esperança. Que o Senhor ilumine e abençoe o Frei José Carlos.
    Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    ResponderEliminar
  2. Frei José Carlos,

    Ao ler esta profunda Meditação do Evangelho de São
    Marcos,que nos ajuda a reflectir mais profundamente
    a Palavra de Deus.Como nos diz o Frei José Carlos...
    Peçamos ao Senhor que nos cative a frequentar a sua
    intimidade,gozar da sua luz transfigurante, para também
    nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo
    o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz
    divina em tudo e em todos.Obrigada,Frei José Carlos,pela
    maravilhosa e bela Meditação que nos dá força, esperança
    e nos fortalece.Que o Senhor o abençõe e o ilumine.
    Uma boa noite,Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno.
    AD

    ResponderEliminar