O trecho do Evangelho de São Marcos que escutámos coloca diante de nós a hipótese daquilo que seria o quotidiano da vida de Jesus naqueles três anos que medeiam entre o início da sua vida pública e a sua morte em Jerusalém.
Dias marcados por um ritmo alucinante em que a pregação se conjugava com os milagres e as curas, as paragens e a visita a casa dos amigos com uma deambulação pelas aldeias, as exigências da multidão frenética com o silêncio da oração isolada.
Um ritmo de vida que poderíamos dizer alucinante, muito próximo ou parecido com o nosso, com o que levamos nos tempos presentes, salvaguardadas as distâncias e as diferenças.
É neste ritmo, usando a expressão de Job, mais veloz que a lançadeira de um tear, que muitas vezes e frequentemente caímos no desânimo e no desespero, agitando-nos angustiados desde a manhã até à noite, como se a vida não passasse de um sopro.
Tudo nos parece vão e sem sentido, uma luta por qualquer coisa que no fundo não nos chega a satisfazer, a preencher as expectativas, em que nos sentimos como escravos ou mercenários lutando e trabalhando para outro alguém que verdadeiramente gozará do fruto do nosso trabalho ou luta.
Sentimentos que levam a questionar-nos sobre a felicidade e contrastam com as palavras de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, em que nos diz que se fez tudo para todos para ganhar alguns a todo o custo. Ou seja, o esforço e o aparente sem sentido pode revelar-se pleno de sentido e de razões, pode ser felicidade, se estiver presente o objectivo do Evangelho.
É interessante e extremamente importante ver que São Paulo parte para a apresentação da sua missão e do seu trabalho alucinante, da liberdade que tem para o fazer e da obrigação a que se sente chamado. A sua fé, o seu encontro com Jesus responsabiliza-o a anunciar, a proclamar o Evangelho de Jesus a todos e sem desfalecer. Essa é a sua obrigação. Contudo, fá-lo com total liberdade, sem esperança de qualquer reconhecimento ou compensação para além do próprio Evangelho que anuncia, da própria realidade a que se sente obrigado.
E à luz destas duas circunstâncias tudo ganha um novo sentido, tudo pode ser lucro ainda que aos olhos humanos e do mundo possa parecer uma humilhação, uma perda de tempo ou desperdício de energias. Há um extra que faz com que o sentido seja recuperado e transcendente ao imediato e visível.
Como cristãos, do relato do quotidiano de Jesus e do sentido que São Paulo confere a cada uma das coisas que realiza no seu quotidiano, derivam desafios e responsabilidades que não podemos deixar de assumir para que o nosso próprio quotidiano e as nossas actividades sejam recentradas na verdade da sua mesma existência.
Assim, não podemos esquecer que tal como Jesus estamos convocados a fazer o bem, a ajudar o outro, incluindo a “sogra” que pode estar doente. A caridade deve marcar a nossa atitude e postura face aos outros.
E como não é fácil, Jesus não deixou de nos dar o exemplo, nem de nos mostrar a fonte para superarmos essas dificuldades, a oração, essa oportunidade e momento de nos reencontrarmos com Deus, connosco próprios e com aqueles que nos rodeiam e as tarefas que temos que cumprir.
É na oração e a partir dela que as realidades adquirem uma nova dimensão, em que o fazer-se tudo para todos ganha sentido, porque ainda que os ganhos sejam poucos eles são sempre uma participação numa realidade maior e total, são sempre participações do activo da empresa, usando uma linguagem financeira.
Neste sentido pode ajudar-nos uma ideia que marca a espiritualidade ortodoxa, mormente dos “staretz” russos, e que podemos encontrar presente numa passagem do “Diálogo de Motovilov com Serafim de Sarov”, e que é a ideia da transfiguração.
Se Motovilov diz a Serafim de Sarov que não o pode olhar de caras porque ele brilha de luz, Serafim de Sarov responde a Motovilov que se o vê brilhar é porque também ele brilha.
Somos chamados a transfigurar-nos em luz para poder iluminar os outros e iluminar todas as realidades dessa mesma luz divina que partilhamos e usufruímos pela intimidade divina em que vivemos. E nessa luz, nesse processo de transfiguração, não há realidades sem sentido, ou angustiantes, porque mesmo a realidade mais pavorosa como a morte se transfigura em acolhimento nos braços do Pai.
Peçamos por isso ao Senhor que nos cative a frequentar a sua intimidade, a gozar da sua luz transfigurante, para que também nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz divina em tudo e em todos.
Ilustração: “Ícone da Transfiguração”, do Mosteiro Spaso-Preobrazhensky, Yaroslavl.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarA liturgia que escutámos neste V Domingo do Tempo Comum leva-nos a reflectir sobre o ser cristão, sobre a vida cristã, na nossa condição, na actualidade.
O texto da Homilia que preparou conduz-nos a fazer o balanço da vida de alguns de nós vivida num ritmo em que ...” Tudo nos parece vão e sem sentido, uma luta por qualquer coisa que no fundo não nos chega a satisfazer, a preencher as expectativas …,” e conquanto digamos a vida não pode ser só isto, o facto de acreditarmos no projecto de trabalho que realizamos, o peso das responsabilidades, conduz-nos a situações de desânimo e desespero, porque nos deixámos enredar em situações difíceis de modificar. Por vezes, circunstâncias, acontecimentos que surgiram na caminhada que vamos fazendo e que não somos capazes de explicar com objectividade, conduziram a que fosse possível operar algumas modificações, pequenas transformações.
Mas ao recordar-nos o contraste dos sentimentos de Job e de São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, salienta-nos que o …” o esforço e o aparente sem sentido pode revelar-se pleno de sentido e de razões, pode ser felicidade, se estiver presente o objectivo do Evangelho”. (…) “Há um extra que faz com que o sentido seja recuperado e transcendente ao imediato e visível.”…
E indica-nos uma forma para ultrapassar a incoerência da nossa forma de ser e de estar como cristãos …” E como não é fácil, Jesus não deixou de nos dar o exemplo, nem de nos mostrar a fonte para superarmos essas dificuldades, a oração, essa oportunidade e momento de nos reencontrarmos com Deus, connosco próprios e com aqueles que nos rodeiam e as tarefas que temos que cumprir.
É na oração e a partir dela que as realidades adquirem uma nova dimensão, em que o fazer-se tudo para todos ganha sentido, porque ainda que os ganhos sejam poucos eles são sempre uma participação numa realidade maior e total”…
Façamos nossas as palavras de Frei José Carlos …” Peçamos por isso ao Senhor que nos cative a frequentar a sua intimidade, a gozar da sua luz transfigurante, para que também nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz divina em tudo e em todos.”
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, importante, que nos consola, fortalece e dá esperança. Que o Senhor ilumine e abençoe o Frei José Carlos.
Votos de uma boa semana.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
Frei José Carlos,
ResponderEliminarAo ler esta profunda Meditação do Evangelho de São
Marcos,que nos ajuda a reflectir mais profundamente
a Palavra de Deus.Como nos diz o Frei José Carlos...
Peçamos ao Senhor que nos cative a frequentar a sua
intimidade,gozar da sua luz transfigurante, para também
nós transfigurados possamos iluminar e transfigurar tudo
o que toquemos ou façamos. Apenas pelo gozo da mesma luz
divina em tudo e em todos.Obrigada,Frei José Carlos,pela
maravilhosa e bela Meditação que nos dá força, esperança
e nos fortalece.Que o Senhor o abençõe e o ilumine.
Uma boa noite,Frei José Carlos.
Um abraço fraterno.
AD