O Evangelho de São Marcos que escutamos e lemos neste ano litúrgico tem essa característica maravilhosa e um tanto estranha de colocar Jesus sempre em caminhada, em movimento de um lado para o outro, e assim o vemos na leitura de hoje a ser impelido para o deserto e dali passados quarenta dias a dirigir-se para a Galileia. Jesus está sempre a caminho de qualquer lugar.
Na Idade Média na espiritualidade cristã desenvolveu-se uma grande corrente penitencial e assim encontramos um numeroso conjunto de homens e mulheres que se colocam também eles em movimento para se penitenciarem, pelo mal que tinham cometido, realizando peregrinações tanto a Jerusalém como a Santiago de Compostela ou a Roma. O esforço da caminhada e os perigos que corriam, a luta por chegar ao lugar de veneração, devolvia-lhes a paz do perdão relativamente ao mal que pudessem ter cometido.
Também nós neste início de Quaresma, neste primeiro domingo, nos colocamos em caminhada, em peregrinação até Jerusalém. E não vamos a pé como os peregrinos medievais, e alguns que ainda hoje se lançam nesse aventura, mas vamos de coração, porque sabemos que em Jerusalém entra Jesus como rei e é aclamado pela multidão, em Jerusalém é julgado ignominiosamente, às portas de Jerusalém é crucificado e em Jerusalém na manhã de Páscoa aparece aos seus discípulos.
Durante os quarenta dias da Quaresma propomo-nos fazer a peregrinação até esse lugar, ou melhor, até ao grande acontecimento que se dá nessa cidade, que é a entrega por amor e a ressurreição por causa desse mesmo amor, um acontecimento que nos garante a companhia nesta nossa caminhada apesar da solidão e do cansaço que por vezes possamos sentir.
E como em qualquer caminhada, ou peregrinação necessitamos de um mapa, uma mochila e companheiros de viagem. A minha experiência pessoal de peregrino a Santiago de Compostela permite-me garantir-vos o quanto são fundamentais estes elementos e partilhar convosco esta situação de peregrino.
Assim, necessitamos de um mapa para saber onde vamos e por donde temos que ir, para não nos perdermos, para que o ânimo se mantenha elevado, na medida em que vamos fazendo contas às etapas superadas, em que vamos percebendo como a meta se perfila logo ali ao passar da curva.
Nesta nossa peregrinação da Quaresma até à Pascoa a oração, e nomeadamente a oração bíblica, é o nosso mapa, o guia pelo qual podemos aferir o sentido da nossa direcção, o guia que nos permite reforçar o ânimo e a esperança apesar das dificuldades da caminhada. Na oração percebemos os montes e os vales, os momentos fortes e os mais frágeis, ganhamos percepção sobre o ritmo da nossa própria caminhada e luz sobre a meta que nos propomos alcançar. Na oração iluminada pela Palavra de Deus, que a Igreja nos convida a meditar mais profundamente neste tempo, vamos percebendo como alguém já fez o caminho, a peregrinação e nos deixou notas e ajudas para que a possamos também nós fazer.
Para qualquer caminhada ou peregrinação necessitamos também de uma mochila, um saco que colocamos às costas com o que basicamente necessitamos. E apesar dos avisos amigos raramente partimos com o verdadeiramente necessário, carregamos sempre mais qualquer coisa na eventualidade de uma necessidade. E assim desde o primeiro momento carregamos com peso supérfluo que nos dificulta a caminhada, e do qual em algum momento teremos que nos libertar para poder continuar a caminhar.
Na nossa peregrinação da Quaresma esta necessidade de ligeireza torna-se urgente e por isso somos convidados ao jejum e à abstinência, a libertar-nos de qualquer coisa que nos dificulta a caminhada. Pode ser um jejum alimentar, que na sua dimensão física, puramente orgânica nos desperta para a fome de Deus que existe em nós, mas pode ser também a abstinência de qualquer outra coisa que nos impede de olhar para o outro com outros olhos e de partilhar com ele o que temos.
Quando hoje nos é sugerido que podemos abster-nos de televisão, de internet, ou até de telemóvel, temos que assumir que se o fazemos é porque queremos fazer a experiência de algo diferente, porque queremos experimentar, voltar a experimentar, a alegria de uma conversa cara a cara com um amigo, de ler um livro que nos enriquecerá pela novidade da sua própria leitura.
Aligeirar a carga da nossa mochila, reduzi-la ao verdadeiramente essencial, é para nos facilitar a caminhada, é para nos proporcionar uma liberdade maior de movimentos e experiências. Neste sentido vão as palavras de Jesus quando recomendava aos seus discípulos que não levassem alforge para o caminho. É necessário agilidade e liberdade.
Por fim a caminhada e qualquer peregrinação faz-se com maior facilidade se nos sentimos acompanhados, se encontramos companhia com quem partilhar o caminho, o tempo, as alegrias, as dores e sofrimentos. É verdade que cada um tem o seu ritmo e devemos respeitá-lo não forçando ninguém nem a caminhar mais rápido nem a ir mais devagar. Contudo, o momento da chegada, quando no caminho nos ajudámos, é o momento da alegria e da festa, porque todos sabem por onde se passou e o que foi necessário sofrer para poder chegar ali. Afinal o caminho de um é o caminho de todos.
A Quaresma apresenta-se-nos neste sentido como a caminhada em que profundamente podemos fazer essa experiência de caminhar juntos, de partilhar e carregar com os pesos dos outros, de oferecer uma palavra amiga ou um braço para levantar. A Quaresma apresenta-se como essa possibilidade de os mais fortes carregaram as cargas dos mais fracos de modo a que ninguém fique para trás e todos se encontrarem à chegada da Páscoa.
Esta é a nossa peregrinação até à Pascoa da Ressurreição, uma peregrinação exigente, dura se a vivermos em autenticidade, mas altamente gratificante, na medida em que, na cidade de Jerusalém que buscamos na eternidade, nos encontraremos todos juntos na alegria da vitória do amor sobre todas as debilidades, fraquezas e infidelidades, porque o amor é sempre mais forte que a morte.
Ilustração: “Cruz de Hierro pela manhã”, no Caminho de Santiago. Maio de 2010.