quarta-feira, 25 de maio de 2011

Mestre Eckhart - Uma Biografia

Apresentar uma biografia do Mestre Eckhart não é uma tarefa fácil, ainda que se encontrem várias por manuais de espiritualidade e dicionários diversos. Há em muitas dessas biografias alguns erros, provocados a maior parte deles por um cabal desconhecimento dos acontecimentos ou por aproximações interpretativas que não são as mais correctas. Por exemplo, apesar de toda a investigação que já se fez e tudo o que já se escreveu, não sabemos a data exacta em que o Mestre Eckhart deixa Estrasburgo para ir viver para Colónia. Facto que é significativo na sua vida.
Neste processo da sua vida, a primeira data certa de que hoje dispomos, a documentada, é a de 1302, ano em que o Mestre Eckhart é “magister”, mestre em Paris. A ela podemos associar a data do início da carreira universitária parisiense, 1293, ano em que entre Setembro e Outubro pronuncia como bacharel a sua conferência inaugural sobre o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. No ano seguinte, 1294, pronuncia ainda em Paris um sermão Pascal.
A partir destas datas pode-se tentar a construção de uma biografia, ainda que para ela se tenham que ter em conta elementos extrínsecos, como seja o tempo necessário à formação religiosa e académica, e que depois podem apresentar alguma discrepância com a realidade histórica.
Tendo presentes estes condicionalismos, podemos dizer que Eckhart nasceu em 1260, numa família da Turíngia, mais precisamente de Hochheim. O nome da localização aparece num sermão sobre Santo Agostinho, sermão esse pronunciado em 28 de Agosto de 1303.
Em 1275 entrou certamente no convento dos dominicanos de Erfurt. O ano corresponde ao seu décimo quinto aniversário e é apresentada porque de acordo com as Constituições Dominicanas não se podia aceitar nenhum candidato a frade sem ter cumprido essa idade. Não poderia portanto ter entrado antes.
Ultrapassado o tempo de prova do noviciado, Eckhart encontra-se certamente em Paris em 1277 para realizar a sua formação no ciclo das Artes, três anos para estudar o “trivium”, a base necessária para o estudo da Filosofia em Colónia, onde se encontra em 1280.
Em 1293 e 1294 encontra-se a comentar as “Sentenças” de Pedro Lombardo em Paris, de onde parte, ainda nesse mesmo ano de 1294, para Erfurt onde é Prior provavelmente até 1298. É habitual que o período de governo de um Prior conventual seja de três anos, pelo que podemos supor que pelo menos Eckhart fez um priorado em Erfurt.
Estando em Erfurt, e preparando-se certamente para um segundo mandato de mais três anos, o Mestre Eckhart foi nomeado Vigário da Turíngia, pelo Prior Provincial da Teutónia, frei Dietrich de Freiberg. Tendo presente que o Capítulo Geral de 1298 tinha ordenado a incompatibilidade dos dois cargos, é plausível pensar que Eckhart tenha prescindido do priorado de Erfurt e se tenha dedicado à função de Vigário, facto que o colocou numa movimentação constante entre conventos.
São desta época os “Reden der Unterweisung”, “As Conferências Espirituais”, apresentados como as “palavras que o Vigário da Turíngia, Prior de Erfurt, irmão Eckhart da Ordem dos Pregadores, dirigiu aos filhos que lhe colocavam numerosas questões aquando da reunião para a Colação da noite”.
Esta apresentação assume os dois cargos, que como vimos são incompatíveis, pelo que podemos afirmar que o redactor faz menção de duas realidades e cargos, que de facto não foram simultâneas, mas que marcaram a vida do Mestre Eckhart e daqueles que sob a sua autoridade viveram.
A função de Vigário da Turíngia é suspensa entre 1302 e 1303, anos em que o Mestre Eckhart volta a estar em Paris e a ensinar. São deste ano de 1302 o Sermão sobre Santo Agostinho, bem como os ecos do seu ensino, que encontramos nas questões Parisienses I e II e nas “Rationes Eckhardi” recolhidas na obra de Gonzalo de Espanha. São questões teológicas que se inserem na animada discussão entre dominicanos e franciscanos sobre o conhecimento e o poder de ensinar.
Em 1303 Eckhart é eleito Prior Provincial de Saxe, Província nascida de uma divisão da Província da Teutónia, para a qual mais tarde também será eleito. Em 1307 e a seguir ao Capítulo de Estrasburgo é nomeado Vigário Geral da Província da Boémia, com uma missão reformadora, que leva a cabo, mas com resistências por parte dos frades seus irmãos. Eckhart encontra-se envolvido nestas questões governativas até 1311, e residindo no seu convento de origem de Erfurt.
Contudo, e apesar das informações institucionais, é um período da vida do Mestre bastante desconhecido, com poucas informações sobre a sua obra e acção. Deste período conhece-se apenas uma carta, datada de 8 de Setembro de 1305 e na qual, dirigindo-se aos Conselheiros da cidade de Gottingen, pede ajuda para o aumento das instalações conventuais. À luz das exigências do oficio governativo a vida do Mestre Eckhart deve ter sido bastante dura neste período, com muito tempo dispendido em deslocações, em discussões de autoridade, enfrentando tanto os perigos da viagem como os dos frades que devia reformar.
A eleição de Mestre Eckhart para Prior Provincial da Teutónia não foi rectificada pelo Capítulo Geral de Nápoles. Assim, não sendo aceite a sua eleição e tendo terminado o mandato de Prior Provincial de Saxe, Eckhart é enviado novamente para Paris, desta feita como “magister actu regens”, um titulo bastante importante e excepcional e que o iguala a um São Tomás de Aquino.
Eckhart está em Paris entre 1311 e 1313 e é neste período que começa a redigir a sua obra tripartida, esse grande conjunto composto de textos de polémica teológicas, de exegese bíblica e de sermões e do qual nos chegou apenas uma pequena parte e graças a Nicolau de Cusa que fez cópia de alguns excertos. Certamente os que lhe interessavam.
O objectivo de Eckhart nesta obra “é demonstrar filosoficamente a verdade das Escrituras para, a partir dessa interpretação, apresentar as Escrituras como a quinta -essência de todo o conhecimento filosófico” (Kurt Flasch, 299)
No final de 1313 ou inícios de 1314, Eckhart é nomeado Vigário Geral da Teutónia e assistente das monjas dominicanas. É com este título e incumbido desta função que ele visita o convento de Unterlinden, juntamente com o Vigário Geral Mateus de Finstingen. Pouco depois, final de 1314, está de partida para Estrasburgo onde vai viver cerca de dez anos e onde compõe grande parte da obra escrita que chegou até nós. É a época de obras importantes, como “Os Sermões”, “O Livro da Consolação Divina, “O Tratado Sermão do Homem Nobre” “O Comentário ao Evangelho de São João”
Estrasburgo representa na vida do Mestre Eckhart um momento muito importante, pois é aí que entra em contacto com toda a espiritualidade feminina que se tinha desenvolvido e estava a desenvolver na região e da qual mulheres como Hadwijch de Anvers ou Mechtilde de Madgebourg são fiéis representantes.
Deste período o tema do “homem nobre” é aquele que mais se destaca e distingue no conjunto. Através desta figura, o homem nobre que é ao mesmo tempo o homem pobre, o homem humilde, Eckhart elabora as grandes linhas da sua antropologia e ontologia. “Escolhendo o homem nobre como eixo de toda a sua pregação em Estrasburgo, Eckhart retoma e desenvolve numa dimensão pastoral a ideia da constituição do ser que está subjacente a toda a sua obra latina e parisiense e cujas raízes mais profundas radicam na Patrística e no seu conceito de “assumptus homo” (Vanier, 100).
Mas este “homem nobre” não é um homem que chegou à perfeição, é um homem que vive inteiramente em Deus, um homem que vive a inabitação divina, ou seja, aquele que chegou ao coração da fé e está unido a Deus.
Os últimos anos da vida do Mestre Eckhart são os mais bem conhecidos, em grande parte devido ao processo de que foi alvo. Contudo, por esse mesmo processo, são também os mais difíceis.
A partir de 1325, depois de ter deixado Estrasburgo para voltar a Colónia, provavelmente em 1324, algumas dúvidas sobre a ortodoxia do Mestre são levantadas. Em Agosto de 1325 Nicolau de Estrasburgo é nomeado visitador Pontifício e é nesse título que visita o convento de Colónia onde alguns frades acusam Eckhart e a sua forma de pregar. Nicolau de Estrasburgo, ainda que simpatizante do Mestre e das suas ideias reformadoras, não pode deixar de cumprir a sua missão e assim ordena um inquérito disciplinar sobre Eckhart. O “Livro da Consolação Divina” é colocado em causa.
Face à benevolência e à falta de poder jurídico de Nicolau de Estrasburgo, dois dominicanos de Colónia, Hermann de Summo e Guilherme de Nidecke acusam o Mestre Eckhart em 1326 à Inquisição. 49 proposições dos seus textos são julgadas condenáveis. Quando Eckhart se defende da acusação o número das proposições aumenta para 59. Face a isto o Arcebispo de Colónia manda instruir o processo. Eckhart depois de interrogado pelo Capítulo da Catedral recorre e apela para o Papa. Estamos no início de 1327, em Janeiro.
Ao recorrer ao Papa Eckhart sublinha a inveja de que era alvo por parte dos acusadores, mas também a história da Ordem a que pertencia. Eckhart recorda que desde o começo da Ordem Dominicana nenhuma acusação de heresia fora imputada a qualquer mestre, ou simples frade dominicano. Eckhart tem razão na sua defesa, porque o que está em causa não é a sua teologia, mas o sucesso da sua palavra junto das gentes, sobretudo das mais humildes.
Eckhart morre no final de 1327 ou princípios de 1328, em Avinhão ou no caminho de regresso, não se sabe, uma vez que a condenação de que foi alvo, e que não chegou a conhecer, lhe retirou o direito a uma sepultura digna da sua obra. As proposições foram condenadas em 1329 pelo Papa João XXII através da Bula “In agro Dominico”.
Este processo do Mestre Eckhart é um testemunho mais da grande oposição que desde o primeiro momento marcou a relação entre os seculares e os regulares, e que esteve na origem de tantos outros processos, como por exemplo o que foi movido contra São Tomás de Aquino. É também o testemunho de um acto mais radical, o da tentativa de corte da influência do Mestre junto do povo fiel.
Mas foi uma tentativa gorada, porque a influência do Mestre Eckhart continuou através de intermediários como Tauler, como os Amigos de Deus, com as diferentes lendas que foram construindo uma imagem única deste dominicano.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Obrigada pelo texto que preparou sobre o dominicano, Mestre Eckhart, sobre a origem, percurso e as dificuldades que enfrentou. Sabia que tinha tido problemas com a Ordem Dominicana mas não sabia que tinham ido tão longe. É um texto que conduziu-me, de novo, a reflectir sobre a problemática da conflitualidade em todas as organizações, a revelação do que todo o ser humano tem de menos bom, a dificuldade que temos de aceitar a diferença, a diversidade, as várias formas que utilizamos para silenciar o próximo, o nosso irmão.
    Peçamos a São Domingos de Gusmão que interceda junto do Senhor para que a luz, a verdade reine nos momentos mais necessários em todos os momentos da vida dos dominicanos e da vida da Humanidade.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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