sábado, 7 de maio de 2011

Viram Jesus aproximar-se (Jo 6,19)

Algumas das coisas que os evangelistas nos relatam de Jesus, da sua vida, do seu comportamento e da sua relação com os discípulos e as gentes são desconcertantes, deixam-nos numa insatisfação que tanto nos pode aproximar como afastar desse mesmo Jesus.
Assim acontece no Evangelho de São João com o relato da multiplicação dos pães e a posterior viagem para a outra margem do lago, de onde afinal tinham vindo quase que de propósito para aquele milagre.
Neste relato Jesus sobe ao monte e senta-se com os seus discípulos e aí vê a multidão que vem ter com ele. Face a tal multidão Jesus preocupa-se com a sua alimentação, que acontece graças ao milagre da multiplicação de cinco pães e dois peixes. No final, depois de recolhidas as sobras, Jesus sobe sozinho ao monte.
Face a isto podemos e devemos perguntar-nos a que monte é que ele sobe, se o que nos é dito pouco antes é que ele já estava no monte com os discípulos e aquela numerosa multidão de cinco mil homens.
Pouco depois São João conta-nos que ao cair da tarde os discípulos embarcaram para a outra margem do lago, sem Jesus, que lhes aparece já quase no fim da travessia feita sob tempestade e borrasca.
Uma vez mais e face a isto podemos interrogar-nos como foi possível que o tivessem deixado para trás, como o puderam abandonar sozinho naquele monte onde antes tinham experimentado e testemunhado o milagre da multiplicação dos pães.
A relação de Jesus com os discípulos e destes com Jesus parece assim marcada por uma certa indiferença, um distanciamento, por uma liberdade que nos desconcerta, que não pode deixar de nos intrigar.
E neste sentido não podemos deixar também de analisar a nossa própria relação com Jesus, de perceber como afinal essa indiferença e essa liberdade, esse distanciamento são fundamentais e extremamente necessários. E isto não significa, nem quero dizer, que não devemos cuidar a nossa intimidade com Deus, a nossa relação com Jesus.
Bem pelo contrário, porque é nesse cuidado e nessa proximidade que percebemos a distância e a liberdade. Deus não se impõe, se sugere, vem ao nosso encontro caminhando muitas vezes sobre os mares tumultuosos do nosso dia a dia, do nosso quotidiano, mas para darmos conta da sua presença e da sua vinda deve habitar em nós esse sentimento, essa consciência que o deixámos numa margem, em qualquer margem das nossas vidas e que ainda não veio ter connosco à barca do momento.
Também devemos ter presente que, como Jesus, necessitamos subir ao monte, para nos sentarmos e partilharmos do pão multiplicado, para ficarmos sós connosco próprios enquanto os outros seguem de regresso aos seus mares e às suas fainas. Para fazer a experiência dessa intimidade de Jesus com o Pai, que o alimentava e permitia multiplicar o pão para tanta gente.
E por fim, neste distanciamento não podemos esquecer a necessidade que há e que temos de nos distanciarmos das imagens falsas do nosso Deus, do Deus em que acreditamos. A ausência de Deus pode e deve ajudar-nos a descobrir a verdade de Deus, pode e deve ajudar a esvaziarmo-nos dessas imagens tantas vezes idolátricas para nos encontrarmos com o verdadeiro rosto de Deus.
É certamente esse o objectivo das imagens desconcertantes de Jesus que nos são reveladas pelos evangelistas, para que nos encontremos com a verdade e para que não nos possamos assenhorar nem considerar donos do Deus em que acreditamos. O nosso Deus é sempre outro, é sempre um outro diferente de nós.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Li, reflecti, voltei a ler esta passagem do Evangelho segundo São João, e a reler o texto da Meditação que partilha connosco. Como nos diz a atitude de Jesus com os discípulos e destes com Jesus desconcerta-nos, intriga-nos, mas o Frei José Carlos deixa-nos algumas chaves para interpretarmos o desenrolar dos acontecimentos. É um texto profundo que nos responsabiliza na nossa relação com Deus mas que também nos encoraja a prosseguir no caminho do aperfeiçoamento. Deus está sempre presente, não nos abandona, quando o pressentimos ausente, quando nos afastamos, quando os nossos ouvidos não nos deixam ouvi-Lo e os nossos olhos não deixam perscrutar o invisível, e o nosso coração e a nossa mente não estão ainda preparados para compreender Deus. Permita-me que respigue algumas passagens do escreveu e que me tocam.
    ...” Deus não se impõe, se sugere, vem ao nosso encontro caminhando muitas vezes sobre os mares tumultuosos do nosso dia a dia, do nosso quotidiano, mas para darmos conta da sua presença e da sua vinda deve habitar em nós esse sentimento, essa consciência que o deixámos numa margem, em qualquer margem das nossas vidas e que ainda não veio ter connosco à barca do momento.
    Também devemos ter presente que, como Jesus, necessitamos subir ao monte, para nos sentarmos e partilharmos do pão multiplicado, para ficarmos sós connosco próprios enquanto os outros seguem de regresso aos seus mares e às suas fainas. Para fazer a experiência dessa intimidade de Jesus com o Pai, que o alimentava e permitia multiplicar o pão para tanta gente.”…
    ...” A ausência de Deus pode e deve ajudar-nos a descobrir a verdade de Deus, pode e deve ajudar a esvaziarmo-nos dessas imagens tantas vezes idolátricas para nos encontrarmos com o verdadeiro rosto de Deus.”
    Que o Senhor nos illumine para que não tenhamos medo de abrir o nosso coração a Deus, cientes do que o Frei José Carlos nos salienta que …”O nosso Deus é sempre outro, é sempre um outro diferente de nós.”
    Obrigada, Frei José Carlos, por esta importante partilha. Bem haja.
    Votos de um bom domingo. Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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