domingo, 15 de maio de 2011

A morte de Santa Joana Princesa

Ao celebrarmos a Festa de Santa Joana Princesa, contemplamos os últimos momentos da sua vida segundo o relato do século XVIII do dominicano frei Manuel de Lima.
“Entrou o mês de Maio de 1490 e nele foi assaltada de um acidente tão forte que ficou sem sentidos, e ao parecer de todos, sem vida. Com vários remédios tornou em si, e vendo-se cercada das Religiosas, que com mares de lágrimas testificavam a sua perda, se alegrou intimamente, e agradecendo o cuidado lhes pediu continuassem com as orações e assistências, porque era chegado o tempo em que eram mais necessárias.
No dia da Tina de São João, de quem também era devotíssima, fez a última confissão geral. Levantou-se na cela um altar, ornado de várias imagens de santos, que pediu deixassem estar até à sua morte. Aqui se disse Missa, e comungou com fervoroso espírito e lágrimas, e quis logo o Sacramento da Unção. Antes de o receber pediu com grande humildade perdão à Comunidade, particularmente das inquietações e moléstias que por seu respeito tinham experimentado. Quando recebeu este último Sacramento, a cada uma das formas repetia com grande dor e contrição: Pequei Senhor, perdoai-me, tende misericórdia de mim.
Tinha o corpo tão mirrado e seco que já se não achava nele humor que lançar pelos olhos, e afligindo-se a serva de Deus de lhe faltarem as lágrimas, disse à prioresa com sentimento: Que será de isto, Madre, que não posso chorar as minhas culpas? Receba o Senhor minha vontade porque o meu corpo já não pode mais.
Viveu ainda seis dias, em que o Divino Esposo acabou de purificá-la por meio de cruelíssimas dores, que sofreu alegremente, entendendo que era os últimos correios dos desejados desposórios.
Não temais Senhora, lhe disse uma freira, porque estando crucificada entre tantos tormentos, não podeis ser separada do sumo bem que por nós morreu em uma cruz.
Não temo, respondeu ela, perder já o Senhor em quem creio, porque a sua misericórdia é tanta, que espero me perdoará, como quem deu por mim a vida, sendo a maior de todos os pecadores; mas não se admire, Madre, que eu mostre tanto sentimento nesta hora, porque não vou para casa de nenhum príncipe terreno, aparecer sim em presença de um Rei celestial, e dar-lhe conta de todo o mal que obrei em minha vida e de todo o bem que podia fazer e não fiz.
Choravam todas as religiosas a sua falta e ela consolando-as dizia: Não choreis Irmãs, antes vos alegrai, se é que me amais, pois vedes que vou de uma vida cheia de misérias e de perigos para casa de um bom Senhor, em cuja piedade tenhas firmes esperanças.
Um dia antes do feliz trânsito entraram os médicos a visitá-la e ela os despediu, dizendo que todas aquelas diligências eram tempo perdido. Mandou chamar o seu capelão e encomendou-lhe que dissesse a Missa das Chagas, que era a verdadeira medicina da alma, e o mesmo ordenou que fizessem todos os religiosos e clérigos da vila. Pediu depois à Prioresa que a mandasse sepultar no coro de baixo, às mais religiosas se lembrassem dela e fossem descansar porque na noite seguinte lhe haviam de assistir.
Ficou falando com algumas freiras que não quiseram recolher-se e foi a prática da Glória que no céu gozam os Bem-Aventurados com tanta clareza e gosto como se já estivera de posse dela. Achava-se a este tempo sem forças, porém com todos os sentidos e perfeito juízo. Perguntava a miúdo que horas eram, e quando soube que tinham dado duas, depois da meia-noite, disse que lhe chamassem o confessor. Tanto que este chegou, fez a Confissão em voz alta e clara e pediu-lhe a absolvição e a aplicação de todas as indulgências que os Sumos Pontífices lhe tinham concedido.
Acabada esta diligência pediu uma imagem de Cristo, e apertando-o entre os braços, com os olhos postos nele, disse: Apartai Senhor, a vossa divina face dos meus pecados. E encomendou às religiosas que lhe rezassem algumas orações. Estava a serva do Senhor suando com a agonia da morte. Vendo-a a Prioresa tão desfalecida, lhe perguntou se queria tomar alguma coisa de substância. Não é tempo Madre, respondeu ela, boa substância será ler-me a Paixão do meu Salvador.
Fizeram-no logo as que estavam junto à cama, ouvindo ela com toda a atenção. E quando chegaram ao passo da bofetada que deram a Cristo em casa de Anás, levantou o braço e com toda a força que tinha e pôde, deu em si uma bofetada, dizendo: Oh Senhor, que tanto quisestes padecer pelos pecadores, perdoai-me, e salvai-me, para que seja do número do que vos hão-de amar e louvar por toda a eternidade.
Quando no fim da Paixão se leu como Cristo expirara, disse com um grande suspiro: Eu sempre esperei em vós Senhor, e por isso a vós encomendo a minha alma, que criastes e remistes com o vosso preciosíssimo sangue.
Depois se recomendou à Mãe da Piedade rezando o Hino “Ave Maris Stela”, repetindo com grande afecto e ternura aquela parte: Maria Mãe de Graça, Mãe de Misericórdia, defendei-nos do inimigo e recebei-nos na hora da morte.
Disse o Credo e pedindo a vela benta do Rosário fez sinal à comunidade que começassem o Oficio da Encomendação da alma. Esteve neste tempo com os olhos fechados e quando chegaram às palavras: “Omnes Sancti Innocentes, orate por ea”, ela os abriu com tanto resplendor que causou admiração; e pondo-os no céu, como quem mostrava o caminho ao espírito, o entregou nas mãos de seu Senhor e Esposo, aos 12 de Maio de 1490, tendo de idade 38 anos. Tanto que expirou tornou o corpo a adquirir a antiga beleza.[1]

[1] LIMA, Frei Manuel de – Agiológio Dominico, Tomo II. Lisboa, Oficina de António Pedrozo Galram, 1710, 326-327.



1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    No dia em que os Dominicanos celebram a Festa Santa Joana Princesa, obrigada por partilhar connosco os últimos momentos da sua vida segundo o relato do século XVIII do dominicano frei Manuel de Lima. Voltei a ler o que escrevera em 2009 sobre Santa Joana Princesa. São dois textos que se completam. É uma partilha que nos enriquece e que serve de inspiração pela fé, simplicidade, humildade, delicadeza, capacidade de sofrimento e de aceitação do mesmo.
    ...” Não temais Senhora, lhe disse uma freira, porque estando crucificada entre tantos tormentos, não podeis ser separada do sumo bem que por nós morreu em uma cruz.
    Não temo, respondeu ela, perder já o Senhor em quem creio, porque a sua misericórdia é tanta, que espero me perdoará, como quem deu por mim a vida, sendo a maior de todos os pecadores (…)”.
    Bem haja, Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva
    P.S. Obrigada Frei José Carlos pelo esclarecimento sobre os problemas havidos com os serviços do Blogger. Continuação de bom domingo. MJS

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