A leitura do Evangelho
deste domingo apresenta-nos na boca do discípulo João uma questão extremamente
pertinente, uma questão que está na origem de muitas das nossas divisões
religiosas, culturais, sociais e até políticas. “Vimos um homem expulsar os
demónios em teu nome mas que não anda connosco”.
A questão de João e a
atitude que os discípulos assumiram, pois proibiram o homem de realizar tais
acções, deriva da consciência de eleição, do facto de um dia Jesus os ter
chamado a cada um deles e os ter enviado a anunciar a Boa Nova do Reino
expulsando os demónios e curando os enfermos.
Por esse facto não só
se consideravam privilegiados como também proprietários exclusivos do poder que
Jesus lhes outorgava. Por outro lado, concebiam a eleição de que tinham sido
objecto como uma delimitação, como se Jesus tivesse constituído fronteiras na
sua comunidade ao fazer aquela eleição e portanto não houvesse lugar para mais
ninguém.
Não podemos deixar de
assumir que em muitas situações da nossa vida nos comportamos como João, que
muitas vezes rejeitamos os outros ou criamos barreiras de comunicação e
fraternidade porque eles não andam connosco, porque não partilham as mesmas
ideias ou porque muito simplesmente consideramos que são uma ameaça ao nosso
poder.
Quantas vezes não
demonizamos o outro porque se apresenta como uma novidade, alguém mais jovem,
alguém com uma ideia válida e transformadora, alguém que ameaça o meu estatuto,
embora não o pretenda nem tenha esse objectivo?
Face à contestação de
João e às nossas muitas atitudes de rejeição e marginalização Jesus eleva o
debate e coloca os discípulos e cada um de nós perante um conjunto de desafios
que nos desconcertam pela sua radicalidade e perante a humildade que lhe é
natural e nos devia contagiar nas nossas relações.
Assim, face à queixa
de João, a resposta de Jesus é que não devem incomodar tal homem por praticar
tais actos, pois ninguém o pode imitar na sua acção e estar contra ele ou dizer
mal dele. Jesus alarga assim a comunidade restrita que os discípulos queriam
constituir, e revela-lhes que a acção e o poder do Espirito não se limita a
alguns nem é propriedade de ninguém.
Com esta abertura Jesus
manifesta igualmente a sua humildade, a sua missão obediente ao Pai, não se
atribuindo mais poder do que aquele mesmo que lhe era dado pelo Pai. A acção do
Pai e do Espirito não são sua propriedade nem estão sob o seu controlo e assim
a deviam compreender e assumir os mesmos discípulos.
E tal como Jesus
também nós devíamos assumir esta humildade, lutar contra as nossas egoístas
pretensões de poder, colocando diante de cada acção o princípio que Jesus
enumera de que quem não é contra nós é por nós, alegrando-nos como Moisés por
se encontrarem entre nós profetas e o Espirito de Deus iluminar outros homens.
À luz deste mesmo
Espirito devemos interrogar-nos sobre as vezes que um plano ou um projecto, uma
ideia nova, não avançou nos nossos grupos familiares, religiosos, ou
profissionais, porque o considerámos como um ataque, quando de facto e no fundo
mais não pretendia que uma reorganização de tarefas e portanto nos poderia
servir melhor, podia estar por nós.
Quantas vezes as
nossas forças e o nosso poder não foram mais forças de bloqueio e de
paralisação, quando podiam ter sido contributo e alavanca para novas realidades
e aproximação a novos desafios mais gratificantes?
Neste sentido, e para
que possamos levar por diante esta atitude humilde e englobante de Jesus, temos
que assumir as propostas radicais de Jesus quanto aos membros que nos impedem
de caminhar e provocam o escândalo.
Não podemos contudo
pensar que a proposta de Jesus ao dizer que devemos cortar uma mão, um pé, ou
arrancar um olho, se é ocasião de escândalo, significa uma mutilação física.
Temos que assumir que se tratam de expressões fortes para veicular uma ideia
extremamente importante, e que é a da purificação, a da conversão.
Neste sentido ainda,
não podemos esquecer que o corpo humano é obra de Deus e deve estar ao serviço
da glória de Deus. Como diz Santo Ireneu, a glória de Deus é o homem vivo, e
portanto o homem em toda a sua forma física. Por outro lado, não podemos
esquecer também aquilo que Jesus disse em outro momento do Evangelho, que não é
o que é exterior ao homem que o contamina mas o que lhe nasce no coração.
As recomendações de
Jesus são assim uma proposta de conversão dos nossos próprios membros, dos
nossos sentidos, da nossa pessoa na sua totalidade, uma conversão no sentido do
serviço do Reino, de sermos instrumentos de construção, e para tal o corte que
nos pode operar, que nos pode reconverter é aquele que resulta da Palavra de
Deus, que como nos diz o Salmo é uma espada de dois fios.
É a Palavra de Deus
que pode e deve operar esse corte que lança fora o que provoca escândalo e
conduz ao pecado. É a Palavra de Deus que nos pode livrar do caminho da
idolatria das nossas próprias forças e membros. É a Palavra de Deus que nos
pode libertar da idolatria do dinheiro e da injustiça para com os outros.
Em conclusão, podemos
dizer que o Evangelho de hoje nos coloca face ao perigo da idolatria do grupo,
da exclusividade do grupo, e da idolatria das nossas forças e meios, da sua utilização
desorientada em ordem ao mundo novo que somos chamados a construir.
Perante tais
idolatrias Jesus revela-nos que tanto o grupo, e a eleição para o grupo, bem
como todos os membros e o trabalho que podem realizar, devem estar ao serviço
de Deus, são instrumentos escolhidos para a revelação do seu projecto de amor e
para a construção do Reino num mundo melhor.
Todos somos
instrumentos de Deus e assim o devemos servir na humildade.
Ilustração: Eleição
dos doze Apóstolos, por James Tissot, Brooklyn Museum.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarLeio e releio o texto da Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum que teceu e que sem rodeios nos confronta com os nossos comportamentos, quando estamos perante uma ideia de alguém que não é nossa ou que não provém do grupo de que fazemos parte, à semelhança da atitude do discípulo João e a reação de Jesus, de que todos somos destinatários. Permita-me que respigue alguns excertos que me tocam particularmente.
...” Não podemos deixar de assumir que em muitas situações da nossa vida nos comportamos como João, que muitas vezes rejeitamos os outros ou criamos barreiras de comunicação e fraternidade porque eles não andam connosco, porque não partilham as mesmas ideias ou porque muito simplesmente consideramos que são uma ameaça ao nosso poder.
Quantas vezes não demonizamos o outro porque se apresenta como uma novidade, alguém mais jovem, alguém com uma ideia válida e transformadora, alguém que ameaça o meu estatuto, embora não o pretenda nem tenha esse objectivo? (…)
(…) E tal como Jesus também nós devíamos assumir esta humildade, lutar contra as nossas egoístas pretensões de poder, colocando diante de cada acção o princípio que Jesus enumera de que quem não é contra nós é por nós, alegrando-nos como Moisés por se encontrarem entre nós profetas e o Espirito de Deus iluminar outros homens.(…)
(…) Por outro lado, não podemos esquecer também aquilo que Jesus disse em outro momento do Evangelho, que não é o que é exterior ao homem que o contamina mas o que lhe nasce no coração.(…)
(…) É a Palavra de Deus que pode e deve operar esse corte que lança fora o que provoca escândalo e conduz ao pecado. É a Palavra de Deus que nos pode livrar do caminho da idolatria das nossas próprias forças e membros. É a Palavra de Deus que nos pode libertar da idolatria do dinheiro e da injustiça para com os outros.(…)
Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, profundas, que nos ajudam a repensar e a transformar as nossas atitudes nas diversas vertentes da nossa vida, por salientar-nos que …” Todos somos instrumentos de Deus e assim o devemos servir na humildade.”
Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o guarde.
Votos de uma boa semana, com paz, confiança, alegria e esperança.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva