Ao terminar a leitura
do Evangelho deste domingo não podemos deixar de reconhecer que nos encontramos
divididos, que vivemos uma espécie de esquizofrenia que deriva do nosso desejo
de poder e da proposta contrária de Jesus.
De alguma forma
estamos predominantemente incluídos no grupo dos discípulos que criticam Tiago
e João pelo seu pedido de participação na glória de Jesus, mas tal acontece
porque nos falta a ousadia e a coragem de manifestar o nosso desejo.
As várias
circunstâncias da nossa vida vão-nos manifestando e dando consciência da nossa
propensão para o poder, para a autoridade e para a glória. Há um desejo em nós
de fazer, de construir, de fazer melhor que os outros, mais que os outros, de
uma forma diferente dos outros.
Contudo, e também
temos bastante consciência disso como cristãos, o nosso desejo fica frequentemente
muito limitado ao material, ao imediato, à imagem e à opinião que os outros
poderão formular de nós e do que fazemos. Vivemos centrados em nós e na
ansiedade da satisfação das nossas expectativas ou do que os outros poderão
julgar.
Por causa deste desejo
natural que nos habita, Jesus não recriminou nem condenou o pedido de Tiago e
João, mas reencaminhou-o, dirigiu-o, para o verdadeiro objectivo do desejo,
para as realidades que devem nortear o nosso desejo, questionando-os sobre o
cálice que é necessário beber.
E é aqui que soçobra o
nosso desejo, porque de facto aspiramos à glória, aspiramos ao reino dos céus,
mas depois falta-nos a ousadia de dar a vida por ele, de nos entregarmos
plenamente à satisfação dessa aspiração. Vivemos como que a meias, coabitamos
entre o eterno e o momentâneo, num pacto convivência pacífica ou nem tanto.
Tal acontece porque certamente
é possível que não possa ser de outra maneira, pois não somos puros seres
espirituais, não somos anjos, somos homens e mulheres, seres limitados e
finitos, uma obra de Deus que transporta em si um tesouro incomensurável mas do
qual apenas vislumbramos os reflexos provocados pela luz do sol da graça.
Nestas circunstâncias
e perante esta realidade a proposta de Jesus para o usufruto de todo o tesouro,
da glória a que aspiramos, passa por uma escavação, por um processo de
implosão, se assim podemos falar, para que possa vir à luz uma nova realidade
de que os reflexos do tesouro nos dão uma imagem.
A proposta de Jesus
aos discípulos e a cada um de nós no sentido do serviço aos irmãos, da
humildade e da simplicidade, da pequenez, é afinal a proposta à abertura e ao
acolhimento de uma realidade que nos é conatural, pois a ela estamos destinados
desde a criação, à satisfação plena do desejo de glória que nos habita.
A nossa condição
finita, as nossas limitações e os desvios para a satisfação dessa sede e fome
de glória, de felicidade, exigem que haja um trabalho constante, uma atenção e
uma vigilância para que tal possa acontecer.
Como nos diz o profeta
Isaías é necessário carregar com o sofrimento, oferecer a vida, para que se
possa alcançar a luz e ficar saciado com a sabedoria e poder gozar do tesouro
que nos pertence. Processo duro, tantas vezes obscuro, e ao qual Jesus chama
beber a taça que ele mesmo bebeu, ou seja, entrar na dinâmica da obediência e
entrega de vida para libertação dos outros.
E para não soçobrarmos
neste processo, para que o serviço possa de facto ser vivido na sua
radicalidade e sirva de redenção para outros, a Epístola aos Hebreus
fortalece-nos na nossa confiança e na nossa esperança. Nós temos alguém que se
compadeceu de nós, das nossas fraquezas, que experimentou a nossa realidade
humana e por isso só podemos caminhar com confiança no seu auxílio oportuno.
Esta confiança do
auxílio oportuno é extremamente importante neste dia em que celebramos também o
Dia Mundial das Missões, que não são tarefa de apenas alguns especializados ou
mandatados. Não podemos esquecer que a padroeira das missões da Igreja é Santa
Teresa do Menino Jesus, uma religiosa que nunca saiu da clausura do seu
mosteiro carmelita.
A missão
evangelizadora é assim uma missão de todos os baptizados, encontrem-se em que circunstâncias
se encontrem. E perante as dificuldades, os perigos, a incerteza e a dúvida
sobre como anunciar, não podemos ter outra base nem outra garantia senão a do
auxílio oportuno do Senhor.
É a confiança e a esperança
desta presença e desta força do Senhor que de facto nos pode ajudar a beber o
cálice da obediência e da entrega da vida para a libertação de todos os homens
e mulheres.
Procuremos pois,
aspirar à glória a que estamos destinados, aos lugares do reino da eternidade, confiantes
que no caminhar e no trabalhar para esse objectivo, perante as dificuldades, a
força e o Espirito do Senhor nos acompanha, ilumina e fortalece. Tenhamos a
ousadia do desejo que conduziu Tiago e João e ultrapassemos a indignação e o
medo que tantas vezes nos provoca esse mesmo desejo.
Ilustração: Pormenor com
figuras eclesiásticas da chegada dos portugueses ao Japão, Biombo Nanbam.
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