quinta-feira, 7 de junho de 2012

Homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

Até daqui a cinco anos é a última vez que celebramos a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo neste dia, numa quinta-feira. No contexto da crise económica em que vivemos, a produtividade sobrepôs-se a esta festa e assim durante cinco anos ficará suspensa a sua celebração tradicional e histórica. Depois veremos.
Face ao peso histórico desta festa a nível nacional e a algumas vozes contestatárias da sua suspensão, um jornalista perguntava a um dos nossos bispos se a Igreja com esta decisão não se tinha subjugado às leis do mercado, ao jugo economicista que cada vez mais nos oprime, ao que o prelado respondeu que era uma obrigação moral para a Igreja.
Compreendo a resposta deste prelado da Igreja portuguesa, compreendo e concordo que devemos estar do lado e de mãos dadas com os esforços no sentido de combater esta crise, é um imperativo moral que radica do próprio mandamento do amor; mas interrogo-me igualmente se esta é a resposta mais correcta, se a Igreja não devia ter defendido, apostado, por um outro imperativo moral que me parece mais fundamental que é o da dignificação do trabalho e do descanso, da colaboração do homem na obra da criação através do trabalho gratificante e do descanso merecido e necessário.
E neste sentido, a leitura do Evangelho de São Marcos apresenta-nos duas questões que de alguma forma lançam luz sobre estas duas realidades, as quais estão também presentes na celebração desta Solenidade do Corpo e do Sangue de Cristo, pois o que apresentamos a Deus para a transformação pelo Espírito Santo, para o corpo e o sangue de Cristo, é fruto do trabalho das nossas mãos e da generosidade da terra.
A primeira questão é colocada pelos discípulos, quando perguntam a Jesus onde deseja que se façam os preparativos para a Páscoa. Podemos assumir que nesta pergunta está subjacente o trabalho do homem, a necessidade da colaboração do homem para a celebração da Páscoa, da passagem para Deus das diversas realidades humanas.
E ainda que muitas vezes vejamos o trabalho como condenação pelo pecado, assim nos é justificado no relato do pecado de Adão, não podemos deixar de ter presente que nesse mesmo relato do Livro do Génesis, e após a sua criação, o homem é convidado a colaborar na multiplicação e preservação da demais obra de Deus.
O homem está assim pela sua natureza implicado na preparação das condições para a celebração da Páscoa, ou seja, deve conduzir todas as realidades ao encontro com Deus, deve propiciar a passagem para o divino, pois Páscoa significa passagem, e para os cristãos passagem da morte à vida.
A outra pergunta que o texto do Evangelho de São Marcos apresenta é formulada por Jesus através dos discípulos que são enviados à cidade para tratar dos preparativos, “onde está a sala em que hei-de comer a Páscoa com os meus discípulos?”.
Na cidade há uma sala que espera pelos convivas, há um espaço no qual se celebrará a Pascoa, um espaço que vem ao encontro daquele que deseja comer a Páscoa, o próprio Deus no seu Filho Jesus. Neste caso a iniciativa está já do lado de Jesus, de Deus, pois é ele que deseja comer a Páscoa com os seus discípulos, é ele que deseja celebrar a passagem.
Esta sala na cidade, alcatifada e pronta, pode ser entendida como o domingo, como o dia em que Deus se faz de modo particular presente, anfitrião, através da Eucaristia, que é memória desta ceia e Páscoa celebrada por Jesus com os seus discípulos primeiros. É também a memória daquele primeiro dia de descanso depois da criação, quando Deus viu que era tudo muito bom e podia descansar. E Jesus pergunta por ela, essa sala que é tempo, necessita dela para a celebração da passagem e o encontro com o homem.
A Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo que celebramos evidencia a importância da Eucaristia como presença do Corpo e Sangue de Cristo, mas realça também essa necessidade do tempo para a celebração, para o encontro e para a passagem.
O homem não é meramente uma máquina de trabalho, um escravo da produção e do consumo, o homem é um colaborador da obra divina, que é feita de trabalho e de descanso. E neste sentido, quando um conjunto de forças parece querer que o homem perca esta nobreza e dignidade, esta colaboração consciente na obra divina, é necessário e urgente redescobrir e valorizar o dia do domingo e a celebração da Eucaristia.
A Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma oportunidade para esta descoberta e valorização, pois como canta São Tomás, num hino do Oficio que lhe foi pedido para esta festa, “aos fracos e esfomeados deu o seu Corpo a comer, e aos tristes, fonte de vida, deu o seu Sangue a beber”.
Num outro hino canta o mesmo São Tomás “um menino nos foi dado, veio aos servos o Senhor, foi na terra semeado o seu verbo salvador”. Saibamos nós com a luz do Espírito Santo apreciar e viver este dom que o Senhor nos deixou como memória do seu amor por cada um de nós e toda a humanidade.

Ilustração: São Tomás escrevendo o Oficio Divino para a festa do Corpus Domini assistido pelos anjos”, de Guercino. Bolonha, Basílica de São Domingos.

3 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Li com muito interesse a Homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Deus. Celebrámos este ano a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Deus antecedida das mais diversas opiniões e controvérsias por parte de crentes e não-crentes, Igreja, etc., sobre a supressão dos feriados religiosos aos quais acresce o “pacote”, se me permite, de igual eliminação de feriados civis. Perguntar-me-à, Frei José Carlos, e alguns seguidores do blogue, quais as razões que me levam a falar também dos feriados civis, neste momento. E o motivo é simples. Ainda que argumentemos com razões diferentes para a concordância ou não, ou como passou a dizer-se, que devemos “relativizar o assunto”, porque afinal não se celebra no dia previsto mas no Domingo seguinte ou no mesmo dia, sem ser feriado, considero que o que está em causa é o modelo de desenvolvimento que criámos, em que o homem não é o centro das preocupações do(s) regime(s) que nos governaram ou governam. Acresce que segundo alguns estudos a questão da supressão de quatro feriados não contribuirá para ajudar a resolver a crise e a Suécia tem, e.g., o maior número de feriados ... e os trabalhadores portugueses são aqueles que trabalham maior número de horas ... Entretanto, há empresas a pagar “Retiros” aos trabalhadores para produzirem mais ...
    Sabemos que vivemos num Estado laico mas a Igreja é um actor fundamental na defesa da vida humana e perdeu, certamente, uma oportunidade para defendermos um modelo de desenvolvimento humanista.
    Como o Frei José Carlos afirma, ....”interrogo-me igualmente se esta é a resposta mais correcta, se a Igreja não devia ter defendido, apostado, por um outro imperativo moral que me parece mais fundamental que é o da dignificação do trabalho e do descanso, da colaboração do homem na obra da criação através do trabalho gratificante e do descanso merecido e necessário.”…
    Ao estabelecer a ponte com o Evangelho recorda-nos que …” O homem está assim pela sua natureza implicado na preparação das condições para a celebração da Páscoa, ou seja, deve conduzir todas as realidades ao encontro com Deus, deve propiciar a
    passagem para o divino, pois Páscoa significa passagem, e para os cristãos passagem da morte à vida. (…)
    (...)Esta sala na cidade, alcatifada e pronta, pode ser entendida como o domingo, como o dia em que Deus se faz de modo particular presente, anfitrião, através da Eucaristia, que é memória desta ceia e Páscoa celebrada por Jesus com os seus discípulos primeiros. É também a memória daquele primeiro dia de descanso depois da criação, quando Deus viu que era tudo muito bom e podia descansar. E Jesus pergunta por ela, essa sala que é tempo, necessita dela para a celebração da passagem e o encontro com o homem. (…)
    (…) A Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo que celebramos evidencia a importância da Eucaristia como presença do Corpo e Sangue de Cristo, mas realça também essa necessidade do tempo para a celebração, para o encontro e para a passagem.”
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, profunda, ilustrada com propriedade e beleza, pelo desassombro e pela actualidade das palavras, por nos levar a ver mais longe e mais alto, por nos salientar que “o homem é um colaborador da obra divina, que é feita de trabalho e de descanso”.
    Que o Senhor o ilumine e o proteja. Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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    1. Bom dia Maria José
      Como sabe, desde o primeiro momento que decidi não comentar os comentários que me chegam e fazem aos textos que publico no blog. Contudo, hoje não posso deixar de concordar consigo, porque de facto, mais que horas de trabalho falta-nos uma cultura do trabalho, e paralelamente do descanso. Creio que nos falta aprender a viver uma e outra realidade com responsabilidade.
      Agradecido pelos fiéis comentários e achegas, deixo um abraço fraterno.
      Frei José Carlos

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  2. Frei José Carlos,

    Agradeço-lhe esta maravilhosa e bela Homilia da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Deus.Muito profunda,esclarecedora e rica de sentido.Li e reli com interesse,gostei muito desta beleza de Meditação.Obrigada,Frei José Carlos,pela beleza e profundidade da Homilia que partilhou connosco e que nos ajudou a meditar mais profundamente.Como nos diz o Frei José Carlos,a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo que celebramos evidencia a importância da Eucaristia como presença do Corpo e Sangue de Cristo,mas realça também essa necessidade do tempo para a celebração,para o encontro e para a passagem.Saibamos nós com a luz do Espírito Santo apreciar e viver este dom que o Senhor nos deixou como memória do seu amor por cada um de nós e toda a humanidade.Grata,Frei José Carlos,pela excelente Meditação,pela beleza da ilustração.Bem-haja.Que o Senhor o ilumine e abençõe e o proteja.Desejo-lhe um bom fim de semana ao Frei José Carlos.
    Um abraço fraterno.
    AD

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