domingo, 10 de junho de 2012

Homilia do X Domingo do Tempo Comum

A origem dos Evangelhos prende-se com a questão “quem é Jesus?”, e na sua diversidade e complexidade cada um dos evangelistas procurou responder a essa questão.
Questão que o mesmo Jesus colocou um dia aos discípulos, “quem dizem os homens que eu sou”, e à qual Pedro respondeu que Jesus era o Messias, o Filho de Deus.
O trecho do Evangelho de São Marcos que hoje lemos apresenta-nos também duas respostas a esta mesma pergunta; uma por parte da família de Jesus, que o considera “fora de si”, um louco, e outra por parte dos escribas vindos de Jerusalém, que consideram Jesus “possesso de Belzebu”, portanto um demónio.
São Marcos reuniu no mesmo contexto, na mesma circunstância, as duas imagens de Jesus, ainda que de grupos opostos, porque ambas enfermam da mesma visão exterior, ambas se ligam ao mal, ainda que no caso da família a visão seja a de Jesus afectado pelo mal, e no caso dos escribas seja a de Jesus como agente do mal.
Na crença popular ao tempo de Jesus, Belzebu era o rei do reino do mal, um reino que se dividia em vários extractos e cujo extracto mais baixo era o dos espíritos que provocavam as doenças, os estados de possessão e similares.
A acusação e afirmação dos escribas vindo de Jerusalém colocam Jesus nestes extracto, uma vez que ele lida com doentes, com possessos, com gente socialmente e religiosamente excluída e marginalizada. Jesus é como um agente do mal e por isso se integra nesta franja de marginalidade.
A resposta de Jesus a esta acusação é por demais evidente e irrefutável, uma vez que ao combater o mal, as doenças, a marginalização, ele não pode pertencer ao mesmo grupo daqueles que lhes dão origem. Jesus está de facto nos antípodas da visão e acusação feita pelos escribas.
E é neste sentido que Jesus lança um desafio, uma ameaça de condenação que de alguma forma permanece enigmática quando diz “quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão”, mas que se esclarece imediatamente a seguir quando ela dirigida àqueles que dizem que Jesus está possesso de um espírito impuro.
O pecado contra o Espírito Santo é assim a recusa da aceitação e do reconhecimento de Jesus como agente do bem, como salvador, como integrador do homem na sua dignidade original. Toda a acção de Jesus quando curava, quando perdoava, quando entregava a sua vida em expiação dos pecados dos homens, visava essa integração, essa restauração da familiaridade com Deus.
E é face a esta integração, a este objectivo de vida, que a visão por parte da família e a sua atitude se opõem, se apresentam em contraposição, expressa de forma parabólica na redacção do texto pela espacialidade dos actores.
Assim, vemos que a família que vem à procura de Jesus o considera “fora de si”, fora dos esquemas tradicionais do grupo e da tribo. Face aos vários comentários que circulam, a família vem à procura de uma reintegração no grupo familiar, nos parâmetros habituais do clã, vem à procura de alguém que parece afectado pelo mal e portanto é necessário proteger.
Contudo, a realidade é bem diferente, Jesus pertence já a um outro grupo, a uma outra família, e São Marcos expressa isso de forma magistral quando coloca a família fora do espaço e local onde se encontrava Jesus com aqueles que o escutavam. Os laços de sangue impediam-lhes o acesso a Jesus, enquanto que a escuta da sua palavra a facultava.
Neste contexto há que ressalvar a pessoa de Maria que se dilui no grupo da família, e que São Marcos não deixa igualmente de ressalvar e excluir apresentando-a apenas como sua mãe. Maria enquanto mãe afigura-se como a expectativa messiânica do povo, a maternidade que necessitava passar à filiação.
E por isso, quando é dito a Jesus que a sua família, mãe e irmãos, estão lá fora à procura dele, Jesus responde que verdadeiramente seus irmãos e sua mãe são aqueles que cumprem a vontade de Deus.
Nesta resposta insere-se o reconhecimento de Jesus como aquele que é o primeiro a cumprir a vontade de Deus, e por essa razão é fonte de bem e salvação, é o agente da integração do homem na órbita e na relação com Deus. Jesus não está na órbita do mal, mas na órbita de Deus.
À luz das palavras de Jesus necessitamos por isso de estar muito atentos ao cumprimento da vontade de Deus nas nossas vidas, à fidelidade aos seus mandamentos, conscientes de que sempre estamos convocados a dar uma imagem verdadeira de Deus, mas muitas vezes essa mesma imagem é mal interpretada por outros.
Contudo, e como diz São Paulo aos Coríntios, não podemos deixar-nos desanimar, não podemos abdicar, porque cada tentativa e cada esforço são uma potencialidade de graças mais abundantes e de maior glória para Deus.

Ilustração: “As tentações de Jesus”, de Alexander Andreyevich Ivanov. Galeria Tretyakov, Moscovo.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia do X Domingo do Tempo Comum que teceu e partilha é profundo e ajuda-nos na interpretação do excerto do Evangelho de São Marcos e que apresenta como nos refere duas respostas à pergunta que Jesus colocou um dia aos discípulos, “quem dizem os homens que eu sou”. Porém, como nos salienta, são duas respostas com origem diferentes e com finalidade diferente, ainda que ambas se liguem ao facto de Jesus ser considerado como possuído pelo “demónio” ou afectado pelo “mal”. Permita-me que respigue algumas das passagens do texto que me tocam.
    (...) Jesus está de facto nos antípodas da visão e acusação feita pelos escribas.
    E é neste sentido que Jesus lança um desafio, uma ameaça de condenação que de alguma forma permanece enigmática quando diz “quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão”, mas que se esclarece imediatamente a seguir quando ela é dirigida àqueles que dizem que Jesus está possesso de um espírito impuro.
    O pecado contra o Espírito Santo é assim a recusa da aceitação e do reconhecimento de Jesus como agente do bem, como salvador, como integrador do homem na sua dignidade original. Toda a acção de Jesus quando curava, quando perdoava, quando entregava a sua vida em expiação dos pecados dos homens, visava essa integração, essa restauração da familiaridade com Deus. (…)
    (...) Assim, vemos que a família que vem à procura de Jesus o considera “fora de si”, fora dos esquemas tradicionais do grupo e da tribo. Face aos vários comentários que circulam, a família vem à procura de uma reintegração no grupo familiar, nos parâmetros habituais do clã, vem à procura de alguém que parece afectado pelo mal e portanto é necessário proteger.
    Contudo, a realidade é bem diferente, Jesus pertence já a um outro grupo, a uma outra família, e São Marcos expressa isso de forma magistral quando coloca a família fora do espaço e local onde se encontrava Jesus com aqueles que o escutavam. Os
    laços de sangue impediam-lhes o acesso a Jesus, enquanto que a escuta da sua palavra a facultava.”…
    Porém, Frei José Carlos, quando reflectia no texto da Homilia e começava a escrever, interroguei-me se afinal este anátema que lançamos, por vezes, a alguém cujo comportamento não se ajusta ou serve os interesses do grupo a que pertence, não tem sido utilizado, ao longo da história e no presente, por regimes políticos, por familiares e amigos, levando a que muitas pessoas sejam afastados de uma vida digna, recorrendo às mais diversas formas de afastamento e isolamento de quem “não está alinhado”?
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, por recordar-nos que …” À luz das palavras de Jesus necessitamos por isso de estar muito atentos ao cumprimento da vontade de Deus nas nossas vidas, à fidelidade aos seus mandamentos, conscientes de que sempre estamos convocados a dar uma imagem verdadeira de Deus, mas muitas vezes essa mesma imagem é mal interpretada por outros.”
    Que o Senhor o ilumine e o proteja. Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP

    o pão e a palavra

    bendito sejas Deus
    pelo pão e pela palavra
    que nos reúnem
    das viagens

    dá ao nosso corpo
    a alegria dos descobrimentos
    e o gosto de continuar
    a nossa viagem para ti


    (In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

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  2. Frei José Carlos,

    Muito grata,pela excelente partilha da Homilia do Evangelho de São Marcos,uma Meditação muito frofunda,que nos ajuda a reflectir com muito interesse esta passagem tão bela do Evangelho,que muito gostei.Como nos diz o Frei José Carlos,faço minhas as suas belas palavras...À luz das palavras de Jesus necessitamos por isso de estar muito atentos ao cumprimento da vontade de Deus nas nossas vidas,à fidelidade aos seus mandamentos,conscientes de que sempre estamos convocados a dar uma imagem verdadeira de Deus,mas muitas vezes essa mesma imagem é mal interpretada por outros.Como diz S.Paulo aos Coríntios,não podemos deixar-nos desanimar, não podemos abdicar porque cada tentativa e cada esforço são uma potencialidade de graças mais abundantes e de maior glória para Deus.Obrigada,Frei José Carlos,pela maravilhosa e bela Meditação que partilhou connosco,que nos ajudou a meditar mais profundamente.Continuação de uma boa semana.Desejo-lhe uma boa noite.Que o Senhor o ilumine o abençõe e o proteja.
    Um abraço fraterno.
    AD

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