sábado, 23 de junho de 2012

Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6, 24)

Num momento em que atravessamos uma crise económica com as consequências que todos conhecemos de desemprego, de famílias que não têm que comer, de consumo reduzido e consequente quebra de receitas fiscais, a qual coloca em questão o próprio estado social que ainda ajuda tanta gente a sobreviver, as palavras de Jesus de que não podemos servir ao dinheiro deixam-nos constrangidos, na medida em que apelam a uma outra atitude que ainda estamos longe de viver.
Quer queiramos quer não, estejamos de acordo ou sejamos críticos, o facto é que construímos um estado e uma forma de vida assentes no dinheiro, um conjunto de relações laborais, comerciais e até sociais, nas quais o dinheiro é essencial. Hoje não podemos viver sem recorrer ao dinheiro, o qual nos permite o acesso a serviços ou produtos como este mesmo texto ou a algo tão essencialmente básico como o pão.
Jesus pôde fazer também esta experiência, ainda que em termos mais rudimentares e não tão comprometedores como hoje, e por isso alertou os seus discípulos, e cada um de nós que lemos e procuramos viver a sua palavra, para a necessidade de uma relação diferente com o dinheiro.
Uma relação que não parte da sua negação, da rejeição, ainda que uma leitura imediata nesse sentido se possa depreender das palavras de Jesus, mas uma relação que assenta na valor relativo do dinheiro face ao homem e como tal face a Deus.
Neste sentido temos que ter presente que a reclamação de Jesus se apresenta como conclusão da necessidade de acumular tesouros no céu, onde a traça os não corrompe e a ferrugem os não corrói. O dinheiro deve estar ao serviço desse objectivo, desse tesouro celeste, o qual se alcança na medida em que olhamos os outros como oportunidade de fraternidade, como desafio à minha desapropriação, como possibilidade de partilha para um enriquecimento e crescimento mútuos.
Idolatrizar o dinheiro ou desprezá-lo são afinal um mesmo insulto a Deus, porque se pela idolatria colocamos o dinheiro no lugar de Deus, pelo desprezo inviabilizamos o poder de realização que Deus nos ofereceu, enterramos o talento recebido não o fazendo render.
Jesus convida-nos assim a uma clarificação, a uma purificação, das nossas atitudes quotidianas, dos pequenos gestos de partilha ou açambarcamento, a um balanço do tesouro que estamos a acumular no céu.
E se a opção fundamental é óbvia, porque de alta rentabilidade, necessitamos cada dia investir no equilíbrio do exercício, nas pequenas aplicações, como confiar em Deus, em nós e naqueles que ajudamos, para que a opção não seja um sonho ou uma miragem que se desvanece.
Necessitamos pois, todos juntos, de dar as mãos nesse esforço de procurar o reino de Deus e a sua justiça porque por ele nos chegará o que nos é devido por acréscimo.

Ilustração: “O cambista e a sua mulher”, de Quentin Matsys, Museu do Louvre.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    A leitura e reflexão do texto da Meditação que teceu e partilha leva-me a fazer uma breve retrospectiva do que inquieta desde sempre todos os que têm preocupações sociais, sejam crentes ou não e que assumiu particular importância nesta última década. Penso na forma da criação da riqueza, em regra, na sua acumulação e na respectiva distribuição. Os sistemas económicos e os regimes políticos deixaram de ter como preocupação principal o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões e o papel que lhes cabia foi substituído pelo sistema financeiro que é determinante, em sentido latu, ocupa o vértice da pirâmide, e numa velocidade de circulação e destruição que a globalização e as novas tecnologias facilitaram largamente para não falarmos de outras formas menos visíveis. Entre outras causas, a liberalização desenfreada, a consequente desregulamentação e a corrupção crescente não podiam conduzir ao bem-estar do ser humano.
    Cumulativamente cada um de nós, na sua insegurança presente e futura, tentámos calar essa angústia através do consumo facilitando a criação de maiores desiquilíbrios. Ontem quando lia o perfil do homem mais rico da Europa, constatava que o mesmo é um forte crítico do consumismo da sociedade actual e passo a transcrever “ Espero que as pessoas percebam o erro que cometem ao deixarem-se levar pelo consumismo, que não conduz a nada de bom. O importante é educar os filhos de uma outra maneira”, considera X, que fez fortuna graças ... ao consumismo” ... Faz-nos reflectir não por se considerar um homem religioso mas pela aparente ou real contradição. E sobre isto não vou acrescentar mais nada dado que é um tema que nos levaria longe na sua abordagem.
    Não sou apologista de um sistema de pauperização que a nada nos conduziria. Defendo e acredito um mundo diferente, humano, justo, sustentável, equilibrado, sem crises reais ou provocadas, em que não exista o fosso crescente entre os mais ricos e os que nada têm. O Reino de Deus constrói-se aqui com o nosso empenho, com outro modo de distribuição da riqueza criada por todos, com partilha com o nosso próximo, com a ajuda de Deus.
    Como nos salienta ...” Hoje não podemos viver sem recorrer ao dinheiro, o qual nos permite o acesso a serviços ou produtos como este mesmo texto ou a algo tão essencialmente básico como o pão. (…)
    (...) O dinheiro deve estar ao serviço desse objectivo, desse tesouro celeste, o qual se alcança na medida em que olhamos os outros como oportunidade de fraternidade, como desafio à minha desapropriação, como possibilidade de partilha para um enriquecimento e crescimento mútuos. (…)
    (…) Necessitamos pois, todos juntos, de dar as mãos nesse esforço de procurar o reino de Deus e a sua justiça porque por ele nos chegará o que nos é devido por acréscimo.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Meditação, pela actualidade da sua reflexão, porque nos desinstala. Que o Senhor o ilumine e o abençõe.
    Votos de um bom domingo.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe o texto de uma oração.

    RECEBER
    CADA DIA COMO
    UM DOM


    Ajuda-me, Senhor, a receber cada dia como um dom. Ajuda-me a reconhecer que nada me falta, que
    Tu me dotaste de tudo aquilo que é necessário para fazer da vida uma coisa feliz e com sentido. Mesmo
    que me falte o universo inteiro, nada verdadeiramente me falta. Mesmo que eu espere muito do amanhã,
    devo saber que tenho tudo hoje. Ajuda-me a despoluir o olhar agravado por juízos, consumos, ressentimentos.
    Que eu saiba acolher a vida como a oportunidade que ela é.

    (In, Um Deus Que Dança, Itinerários para a Oração, José Tolentino Mendonça, 2011)

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