O Evangelho de São Marcos que escutámos termina dizendo que Jesus pregava a palavra de Deus com muitas parábolas, conforme eram capazes de entender, e que não lhes falava de outro modo, mas em particular tudo explicava aos discípulos, que muitas vezes pouco conseguiam entender e por isso a necessidade de uma explicação.
Este desajuste da pregação de Jesus e da sua compreensão não pode deixar de nos interrogar, pois confrontamo-nos com um processo que parece contradizer-se nos seus elementos. Como é possível anunciar a palavra, transmitir uma mensagem, usando um método que depois não permite a cabal compreensão da mensagem, da palavra?
Antes de mais, temos que ter presente que as parábolas não eram um monopólio de Jesus, que era um método comum no mundo semita e que já em outros momentos da história do povo de Israel tinha sido utilizado e com bastante poder comunicativo.
Um dos exemplos mais perfeitos deste passado histórico e poder comunicativo encontra-se na história do rei David, pois o profeta Natan serve-se de uma pequena história de uma ovelha de um pobre para fazer tomar consciência ao rei do pecado que tinha cometido quando habilmente fez desaparecer Urias para tomar Betsabé como esposa. O profeta não ataca directamente o rei, nem o acusa do seu crime, mas através de uma história coloca-o face a face com a consciência e o crime e pecado cometidos.
A parábola é assim um processo pedagógico, uma narração construída sobre elementos concretos e conhecidos, e no caso do texto do Evangelho de hoje em elementos do mundo da agricultura, portanto familiares aos ouvintes, para veicular a esses mesmos ouvintes uma mensagem, que obrigatoriamente necessita uma interpretação, uma descodificação.
O objectivo comum de todas as parábolas é convidar-nos a uma mudança de olhar e de comportamento, a um outro posicionamento face às realidades que a própria história evoca. Para compreender a parábola torna-se assim necessário colocar-se em causa, aceitar deixar-se interpelar pela história contada.
De aspecto simples, quase banal, as parábolas encerram uma lição exigente, um gérmen de revolução, e por isso quando Jesus é condenado pelos tribunais de Jerusalém não é só uma questão de filiação divina que está em causa, é também um conjunto de histórias, um conjunto de parábolas, que ainda que agradáveis e simpáticas colocavam em causa verdades instituídas.
Para além da dificuldade de compreensão, inerente às parábolas enquanto interpelação e alteração de olhares, as parábolas de Jesus sofreram ainda de uma dificuldade acrescida, pois ele serve-se das parábolas para falar de um objecto, de uma realidade, que não é descritível, que escapa à demonstração, como é o reino de Deus.
A linguagem metafórica, com o que comporta de comparação e de representação, é a única linguagem possível para tentar dizer um dinamismo que escapa à descrição, que só se pode enunciar por outras palavras, porque o reino de Deus é e não é, está a ser mas ainda não é.
Neste sentido, devemos perguntar se depois de lermos as parábolas do reino podemos dizer concretamente o que é o reino de Deus. E a bem da verdade, temos que responder que não, porque as parábolas não nos impõem uma conclusão, uma determinação sintética, mas abrem-nos para outra realidade, para um mistério.
As parábolas, e nomeadamente as parábolas do reino que Jesus conta, querem colocar-nos em caminho, em direcção a um desconhecido que se vislumbra, querem elevar-nos da realidade e da materialidade para outra coisa mais.
E neste sentido as parábolas que hoje o Evangelho nos apresenta são paradigmáticas, pois tanto a parábola da semente que cresce sem qualquer intervenção do homem, como a parábola do grão de mostarda que tem uma força geradora tão grande, querem manifestar uma fragilidade e um poder que são inerentes ao reino e ao seu dinamismo, uma acção que é anterior e exterior ao homem.
Assim, e tendo presente a parábola da semente que cresce sem qualquer intervenção do homem, percebemos que o reino de Deus é uma vida, um acontecer, um dinamismo que parte de si mesmo, do seu poder e força internas. É Deus, na palavra que é semente, que vai agindo, que vai fazendo crescer e ao homem compete-lhe apenas ser boa terra, predispor-se a ser boa terra para acolher a semente como nos é dito em outra parábola.
Não podemos por isso dizer que o reino de Deus é isto ou aquilo, é esta realidade ou aquela. Apenas podemos identificar elementos do desenvolvimento desse reino, um germinar, uma planta, um fruto que parece despontar nas acções do homem que coopera.
A oração, a fraternidade, os méritos do nosso trabalho, a justiça que praticamos e tantas outras realidades, enquanto manifestações do reino, não são acções nossas mas daquele que vai agindo, que vamos permitindo que actue em nós e por intermédio de nós.
Por outro lado, a parábola da semente de mostarda mostra como da fragilidade pode nascer a força e a transformação, como uma pequena semente, a mais pequena das sementes, encerra em si um potencial tão grande de realização.
Assim, somos convidados a não nos deixarmos vencer, nem a desanimar, face àquilo que nos parece irrisório, frágil, minúsculo, porque não sabemos verdadeiramente o seu poder transformante, multiplicador, o seu potencial.
A mais pequena palavra de solidariedade, a mais breve oração, um qualquer gesto de caridade pode de facto transformar-se, pode tornar-se numa grande obra à sombra da qual outras se podem acolher, com a qual outros homens e mulheres podem colaborar.
Face às parábolas que escutámos no Evangelho de hoje deixemo-nos pois interpelar por elas, observemos com atenção o que elas nos apontam, nos desvelam da mensagem de Deus e do reino a viver entre nós, conscientes que caminhamos na fé e sem uma visão clara, como diz São Paulo aos Coríntios, mas ainda assim, confiantes que a acção de Deus, a sua força germinal, é inerente a este mesmo caminhar.
Ilustração: “A umbrela vermelha”, de Franz von Lenbach, Kunsthalle Hamburgo.
(À sombra da umbrela, no meio de campos maduros, uma vida que se desenvolve)
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Homilia do XI Domingo do Tempo Comum que teceu e partilha é profundo e belo. Como nos salienta ... “O objectivo comum de todas as parábolas é convidar-nos a uma mudança de olhar e de comportamento, a um outro posicionamento face às realidades que a própria história evoca. Para compreender a parábola torna-se assim necessário colocar-se em causa, aceitar deixar-se interpelar pela história contada. (…)
(…) A linguagem metafórica, com o que comporta de comparação e de representação, é a única linguagem possível para tentar dizer um dinamismo que escapa à descrição, que só se pode enunciar por outras palavras, porque o reino de Deus é e não é, está a ser mas ainda não é.
Neste sentido, devemos perguntar se depois de lermos as parábolas do reino podemos dizer concretamente o que é o reino de Deus. E a bem da verdade, temos que responder que não, porque as parábolas não nos impõem uma conclusão, uma determinação sintética, mas abrem-nos para outra realidade, para um mistério.
As parábolas, e nomeadamente as parábolas do reino que Jesus conta, querem colocar-nos em caminho, em direcção a um desconhecido que se vislumbra, querem elevar-nos da realidade e da materialidade para outra coisa mais.”…
Permita-me que continue a respigar algumas passagens do texto que me tocam particularmente .
(...) a parábola da semente (…)É Deus, na palavra que é semente, que vai agindo, que vai fazendo crescer e ao homem compete-lhe apenas ser boa terra, predispor-se a ser boa terra para acolher a semente como nos é dito em outra parábola. (…)
(...) Não podemos por isso dizer que o reino de Deus é isto ou aquilo, é esta realidade ou aquela. Apenas podemos identificar elementos do desenvolvimento desse reino, um germinar, uma planta, um fruto que parece despontar nas acções do homem que coopera.
A oração, a fraternidade, os méritos do nosso trabalho, a justiça que praticamos e tantas outras realidades, enquanto manifestações do reino, não são acções nossas mas daquele que vai agindo, que vamos permitindo que actue em nós e por intermédio de nós.
Por outro lado, a parábola da semente de mostarda mostra como da fragilidade pode nascer a força e a transformação, como uma pequena semente, a mais pequena das sementes, encerra em si um potencial tão grande de realização. (…)
Bem-haja por nos exortar …” Face às parábolas que escutámos no Evangelho de hoje deixemo-nos pois interpelar por elas, observemos com atenção o que elas nos apontam, nos desvelam da mensagem de Deus e do reino a viver entre nós, conscientes que caminhamos na fé e sem uma visão clara, como diz São Paulo aos Coríntios, mas ainda assim, confiantes que a acção de Deus, a sua força germinal, é inerente a este mesmo caminhar.”
Grata, pelas palavras partilhadas, pela profundidade do texto, pela força que nos transmite, por clarificar o sentido das mesmas, por ir mais além, por nos recordar que precisamos estar abertos, disponíveis para que a Palavra de Deus opere a sua transformação, com fé, confiança e humildade.
Que o Senhor o ilumine e o guarde. Votos de uma boa semana.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que volte a partilhar um poema de Frei José Augusto Mourão, OP
Deus que vens de Deus
Deus que vens de Deus,/horizonte da nossa linguagem e do nosso desejo;//
Deus que anunciamos/na espessura do que em nós é riso/e choro, ao mesmo tempo infiguráveis;//
Deus, instante fugaz/da sede e da fome saciadas, diferidas;//
que descubramos no corpo dos outros/os traços do bem que procuramos e perdermos,//
que a nossa vida te reconheça/pela maneira como por ti se vê reconhecida/na teia do que passa e permanece,//
tu que és aquele que há-de vir,/
E Deus connosco//
(dizer DEUS ao (des)abrigo do Nome, Difusora Bíblica,1991)