domingo, 10 de maio de 2009

HOMILIA V DOMINGO DO TEMPO PASCAL



“Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que está em mim e não dá fruto e limpa todo aquele que dá fruto, para que dê ainda mais fruto”.
(Jo 15,1)
Esta alegoria vinícola de Jesus coloca-nos perante uma realidade inevitável, até dolorosa e por isso facilmente rejeitável; nós somos sarmentos, ramos de uma videira, e nesta condição o que é próprio é ser podado, é ser sacrificado para que a videira possa dar frutos e bons frutos.
Para a nossa cultura hedonista, assente sobre o prazer, sobre o bem-estar, esta alegoria pode parecer-nos estranha, inaceitável, pois quem é que está disposto a sacrificar-se, a perder-se para que outro possa crescer? Ou até, a sacrificar alguma coisa para obter um outro resultado mais positivo em outra realidade completamente incontrolável?
Contudo, e ainda na nossa cultura, eficiente, produtiva, esta metáfora é aquela que mais se aproxima de uma prática comum. Os economistas e gestores sabem perfeitamente como muitas vezes para aumentar os resultados é necessário fazer cortes aqui e ali. A nossa realidade económica e social é neste aspecto bastante dura e mais que demonstrativa.
Mas, e ainda que a actual situação económica e financeira deva merecer a nossa atenção, interessa-nos reflectir sobre esta alegoria de Jesus para perceber que estamos todos nesta condição de ser podados, talhados, e que é um processo que não tem fim, um processo que se desenvolve quotidianamente no nosso ser cristão.
Aproximar-se de Cristo, manter-se em união com Ele não significa ficarmos livres de perigos, de provas ou sofrimentos, bem pelo contrário, pode significar até um aumento, que nos pode conduzir ao desânimo, ao cansaço, ao abandono, pois segundo a nossa opinião a cruz que o Senhor nos entregou é demasiado grande e pesada
Num Diálogo com Santa Catarina de Siena Deus disse-lhe que os servidores que se mantém nele são mais experimentados, são mais atribulados, para que possam dar mais fruto e de melhor qualidade, e também para que possam comprovar a virtude que habita neles. Palavras mais ou menos semelhantes foram dita a Santa Teresa de Ávila, ao que ela respondeu, não admira portanto que tenhas tão poucos amigos.
E isso acontece porque não é fácil aceitar estas palavras, palavras que nos dizem que é da nossa condição sermos moldados, podados, e que quando há que passar por isso, há que passar por isso, não há fuga possível. Não é fácil aceitarmo-nos sarmentos a podar.
Mas, e é um pormenor importante, a poda é sempre um momento de passagem, um acontecimento que se produz uma vez por ano, podíamos dizer quase um acidente. O mais difícil, e que nos deve colocar em alerta, é o inverno, essa estação em que a cepa da videira vive sem sarmentos, sem ramos verdes, em que a nossa vida é colocada em questão por um vazio ou um sem sentido daquilo que fazemos. Como viver de Cristo e com Cristo quando estamos no inverno, quando tudo perdeu o sentido e a razão de ser? Como podemos cuidar da nossa alma, da nossa fé, quando a memória nos traz a violência das vindimas e da feitura do vinho e a incerteza dos frutos e da qualidade desses frutos que aparecerão no futuro. Como viver cristãmente quando já não temos a certeza da validade do conselho de morrer por amor de Cristo?
A resposta a estas questões é permanecer, estar, pois para passar a prova do inverno é imprescindível e inevitável permanecer, ficar vigilante e de guarda. O inverno é longo, por vezes demasiado longo, mas mesmo assim é necessário permanecer, aprofundar as raízes para enriquecer a seiva e alimentar o potencial de frutos a nascer. Mas como o fazer é a pergunta que tantas vezes nos colocamos e para a qual tantas outras vezes não encontramos a resposta.
E a resposta é no mínimo surpreendente e pode ser para os mais novos até escandalosa, a resposta é o nosso dever. É o nosso dever que nos permitirá permanecer, não desfalecer nem desanimar, e esperar os frutos que o verão nos trará. Quando a prova nos bate à porta, quando o coração sangra de sofrimento, quando o entusiasmo anda pelos mínimos, quando apetece atirar a toalha ao chão, quando já não vemos sentido, o nosso dever é o último refúgio, a nossa última fonte de energia. Permanecemos e fazemos o que já ninguém espera, às vezes nem nós próprios, porque é o nosso dever.
Neste sentido o dever é uma arma fortíssima, um desafio incomensurável, porque quando tudo nos aponta o fundo, nós olhamos para esse fundo e não nos afundamos. Quando tudo parece perdido nós continuamos a acreditar.
Mas ao falar de dever, temos que ter presente que há dever e dever e se hoje temos bastante vergonha em falar de dever é porque na nossa concepção colocámos o dever nos antípodas do amor, quando o contrário é bem mais verdade; e também porque nos esquecemos, ou não queremos ver, como o dever é o último refúgio da liberdade, ao contrário da prisão de que tantos fazemos alarido que é.
A concepção de dever de que tantos fugimos ou queremos fugir é a concepção kantiana do século dezoito, que subtilmente se infiltrou na piedade e religiosidade católica a que hoje chamamos de conservadora ou rigorista. E neste sentido ainda bem que queremos fugir dela, e deste dever, porque é uma força que se nos impõe de fora e portanto nos coarcta da nossa liberdade.
O dever que é uma arma fortíssima, o refúgio de liberdade, é uma força que vem das profundezas da alma, podemos dizer com toda a convicção que é um dom de Deus, porque essa força se chama caridade, se chama amor. E à luz do amor, à luz da caridade, nada é feito à força, nada pode ser preso.
É este o nosso dever, o dever do amor, o dever que é capaz de dizer até mesmo a Deus, num desafio total, Jesus tu já não me amas, mas ainda assim eu continuo a amar-te! Estas palavras loucas e ousadas, fruto do dever de rezar, forçarão o dever de Deus de se colocar ao nosso lado, de nos escutar. É apenas um exemplo com uma formulação exagerada do que o dever nos conseguirá, podemos aplicá-lo a muitas outras situações e realidades da nossa vida.
Peçamos assim ao Senhor que nos conceda o discernimento para saber quais são os nossos deveres e para que nunca nos esqueçamos que o primeiro deles é amar ao próximo como Deus nos amou.

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