Ontem celebrávamos com alegria a glória daqueles que já partiram deste mundo, hoje continuamos a celebrar aqueles que já partiram deste mundo e da nossa companhia física, mas fazemo-lo com uma dimensão de tristeza, de sofrimento, com a dor de quem sabe que há um processo de amor que ainda não está terminado e é necessário completá-lo para viver plenamente a glória. E nesse processo a nossa oração pode ter algum significado.
Não é habitual hoje em dia falar-se do Purgatório, parece que é uma realidade que nos constrange e desacredita na confiança e no amor de Deus, na sua misericórdia. Contudo, é um mistério que faz parte da nossa confissão de fé e por muito que nos constranja ou interrogue ele apresenta-se desafiante na centralidade da nossa fé.
Não temos nenhuma revelação directa sobre o que é o purgatório, esta realidade é um mistério, pelo que não podemos concebê-lo como um tempo de espera ou um espaço tipo antecâmara do céu. É demasiado limitativo para a sua dimensão processual e dinâmica, porque o purgatório é um processo, um confronto dinâmico entre o nosso amor e o amor de Deus.
Nesse processo purgativo encontramo-nos com o amor eterno de Deus, o amor que sempre nutriu por cada um de nós, que nos foi oferecido, sugerido vezes sem conta, mas para o qual não tivemos muito tempo nem demos muita atenção. Afinal estávamos e estamos mais inclinados aos amores efémeros, aos amores deste mundo e da nossa condição física, que nos satisfazem momentaneamente. Habita em nós a sede do amor infinito de Deus mas vamos satisfazendo essa sede com pequenos amores finitos e precários.
No purgatório confrontamo-nos com este desperdício e por isso sofremos, pela perda, pelo equívoco e pela necessidade de nos despojarmos das cargas amorosas que levamos para nos podermos encher do amor de Deus que nos colma em plenitude. E não podemos dizer que é um castigo, que é uma diminuição do amor e da misericórdia de Deus, bem pelo contrário, é mais uma prova da sua misericórdia e do seu amor, permitindo desta forma que nos vejamos pobres e miseráveis e nos disponhamos a recebê-lo já sem limites nem condições.
Inevitavelmente é um processo doloroso, como são todos os processos de maternidade, de construção, e por isso é que a Igreja desde os tempos mais remotos acreditou que pela sua oração, pela sua intercessão podia ajudar e aliviar esse sofrimento. Os reformadores protestantes do século XVI viram nesta oração uma fantasia, uma criação dos homens, mas a tradição ancestral fundamentou-a na acção de Judas Macabeu que após uma batalha mandou oferecer um sacrifico no templo por aqueles que tinham tombado mortos e tinham sido encontrados com amuletos e objectos idolátricos (2Mac 12,46). Judas Macabeu acreditava que a sua oferta podia aliviar as penas daqueles que tinham morrido de uma forma tão ignominiosa, que as suas almas podiam ser purificadas depois desta vida. Também a Igreja acredita e por isso, para intensificar esta oração e esta comunhão também de amor, é que no século X, o quinto abade de Cluny, Santo Odilon, instituiu em forma litúrgica a comemoração que hoje fazemos.
Podemos e devemos assim rezar pelos defuntos, e de modo especial por aqueles pelos quais ninguém reza, mas ao fazê-lo devemos ter presente que estamos a rezar por eles e por nós e ainda que inconscientemente a confrontar-nos com a dimensão da nossa finitude, com a nossa breve passagem por este mundo e pelo amor que nos é oferecido por Deus e tantas vezes nos esquecemos de receber e de ofertar aos outros com quem vivemos.
Peçamos assim ao Senhor que nos liberte a todos, vivos e defuntos, das amarras dos nossos amores e nos encha do seu amor glorioso em plenitude.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarA Comemoração da partida deste mundo de todos os que estão ausentes fisicamente, da morte recordada com tristeza, emoção, a qual interrompe a nossa relação com os outros, lembra-nos uma outra dimensão da nossa vida, a eternidade, vivida na morte e ressurreição de Jesus. Somente esta esperança que nos ilumina, suaviza o sofrimento físico e psicológico da perda física da nossa relação com os outros, frequentemente interrompida, de modo brusco, e que dá sentido à vida. Esta aproximação, esta vontade de comunhão com os que nos precederam e que nos leva a orar neste dia, e sempre que sentimos necessidade, e a invocar a misericórdia do Senhor para eles e para nós. Mas a eternidade, a verdadeira vida, implica que a nossa vida terrena seja vivida no amor de Deus e ... “de ofertar aos outros com quem vivemos” como bem nos recorda Frei José Carlos.
Oremos hoje e sempre por todos os fiéis defuntos, especialmente os mais esquecidos e necessitados.
Obrigada Frei José Carlos pela partilha que é sempre um momento de meditação, de esclarecimento, de inspiração. Bem haja.
Um abraço fraterno
MJS