Celebramos hoje a solenidade de Todos os Santos, mas a exemplo de São Bernardo, no seu sermão número dois, podemos interrogar-nos sobre o que adianta aos santos esta nossa celebração, em que os glorifica, uma vez que já participam da glória de Deus e portanto não necessitam das nossas honras e nada se lhes pode acrescentar com as nossas devoções. Porquê então esta celebração?
A resposta é dada por São Bernardo no mesmo sermão, porque se nada interessa aos santos esta festa, interessa-nos muito a nós, na medida em que esta memória e recordação nos pode inflamar no desejo de os imitarmos, nos permite ver explicitada em formas concretas, situadas historicamente as Bem-Aventuranças que Jesus apresentou aos seus discípulos e que escutámos no Evangelho de São Mateus que lemos neste dia.
As Bem-Aventuranças são um enunciado que para os discípulos de Jesus se apresenta como uma Magna Carta, como a sua constituição fundamental, um conjunto de leis novas que regulam e dinamizam a nova Aliança estabelecida em Jesus Cristo. Não são leis de subjugação, de opressão, mas pelo contrário um conjunto de preceitos ordenados de modo a favorecer a liberdade, a responsabilidade e a identidade pessoal enquanto crentes e discípulos de Jesus.
As Bem-Aventuranças conduzem-nos assim na fidelidade enquanto discípulos de Jesus, mas também nos assemelham ao próprio Jesus que as enunciou, porque de facto elas são uma outra face da revelação de Jesus, do Filho de Deus, um outro prisma, em que se nos apresenta a dimensão filial, redentora, misericordiosa, que Jesus viveu histórica e pessoalmente e aqui se apresentam explicitadas através destes enunciados. São um horizonte que se nos abre mas ao mesmo tempo a certeza de um caminho possível porque já trilhado e vivido por aquele mesmo que as propõe.
Os santos que hoje celebramos mostram-nos através das suas vidas as multiformes possibilidades de este horizonte, a dinâmica de estas Bem-Aventuranças enquanto concretizações na história e no tempo e não apenas na sua origem e fonte que foi Jesus. É possível hoje e aqui viver as Bem-Aventuranças de Jesus.
E a primeira a viver é a da pobreza em espírito, porque dos pobres em espírito é o Reino de Deus. É uma Bem-Aventurança que frequentemente orientamos para a pobreza material, enquanto despojamento de bens e capacidade de desprendimento. É verdade que também por essa dimensão ela se realiza, mas a sua realidade é mais profunda, ontológica, marcante do nosso ser e assim seremos bem-aventurados quando antes de mais nos reconhecermos como necessitados, como carentes, como em falha que necessita ser colmatada.
A pobreza bem-aventurada é aquela que alegremente reconhece que nada pode por si mesma e portanto entrega-se nas mãos de Deus esperando o seu enriquecimento, o suprimento das suas carências. Vive na confiança de receber o apoio e a assistência de Deus em cada instante e em cada necessidade. Desta forma aproxima-se da pessoa de Jesus e da configuração à sua palavra, ele que na sua encarnação não deixou de confiar no Pai e em cada momento erguia os olhos para o céu esperando a sua ajuda e a sua força. A pobreza bem-aventurada vive de uma forma paradoxal a filiação, na qual a dependência e a obediência são expressões do amor mútuo.
A pobreza vivida desta forma é o pórtico de entrada para a realização da Bem-Aventurança da humildade, porque os humildes possuirão a terra. Conscientes da nossa pobreza estrutural, ontológica, podemos fazer caminho para os outros também pobres como nós. Poderemos ir ao encontro dos outros humildemente porque nos sabemos iguais, necessitados e portanto capazes de partilhar a mesma vida e o mesmo caminho. Desta forma abrimos a porta à construção de uma nova terra, de um novo paraíso, onde o dom de Deus de que fomos objecto se transfere para o outro como dom também gratuito. A paciência, a disponibilidade, a generosidade, o carinho e tantos outros gestos de dom concretizam esta humildade que nos aproxima da vida de Jesus enquanto filho, enquanto homem de Nazaré, enquanto membro de uma família e de uma cultura e sociedade específica.
São bem-aventurados também aqueles que choram, porque serão consolados, os que choram pelas suas dores e pelas dores dos outros. Deus não é insensível às lágrimas de ninguém e vem sempre ao encontro delas. Contudo, esta Bem-Aventurança leva-nos a umas outras lágrimas, lágrimas experimentadas por Jesus quando chorou por Jerusalém, quando chorou pelos pecados dos homens. A consolação da Bem-Aventurança é fruto destas lágrimas porque todo aquele que chorar os seus pecados será consolado pela graça de Deus e pelo seu perdão. Se Deus não fecha os olhos às lágrimas da dor física, da perda de um amigo, como na morte de Lázaro, não pode ainda mais ficar insensível quando as lágrimas são do arrependimento do mal cometido.
São bem-aventurados e serão saciados aqueles que tem fome e sede de justiça, e serão saciados com a Bem-Aventurança da misericórdia, porque a justiça e a misericórdia andam unidas na mão de Deus. Os homens e mulheres que buscam na terra e na sua vida a justiça, a existência dessa justiça que vem de Deus, inevitavelmente têm que viver a misericórdia e portanto serão beneficiados com a misericórdia de Deus.
Estas dimensões, a pobreza, a humildade, a dor do mal, a justiça e a misericórdia conduzirão à pureza de coração que permite ver a Deus. É um desejo inato em nós, mas é também uma meta que se nos propõe, uma Bem-Aventurança que se pode alcançar na medida em vivemos as outras diversas bem-aventuranças. Pela pobreza de coração, pela humildade, pelas lágrimas, pela justiça e pela misericórdia fazemos essa ascese purificadora do coração que nos permite ver a face de Deus, face presente na obra da criação, nas vidas dos nossos irmãos, nos desafios e oportunidades que a vida nos coloca para a realização do bem.
E como diz São João na sua carta, se vivemos com essa esperança de ver Deus tal como Ele é não podemos deixar de ir lutando por esta purificação, ou seja não podemos deixar de ir tentando a realização das Bem-Aventuranças na nossa vida, em cada uma das possibilidades que se nos apresenta de concretização.
E desta forma, através desta busca constante, consequentemente seremos bem-aventurados construtores da paz, poderemos ser chamados filhos de Deus, porque em tudo o que fazemos não nos deixamos guiar pelas nossas forças nem ambições, pelos nossos desejos de violência e superioridade, mas pela bondade e pelo perdão, pela generosidade e o reconhecimento da acção de Deus na história através de sinais tão ténues como um abraço de um filho ou uma saudação de um vizinho mais novo. Utópico, certamente, mas poderemos experimentar viver nesta terra e nesta história um pouco como se não fossemos deste mundo, como estando no mundo mas não sendo deste mundo.
E é neste mundo que se cumpre, ou nos está destinado viver a última Bem-Aventurança, aquela que Jesus coloca com uma realidade futura mas inevitável, na medida em que somos ou queremos ser discípulos, filhos de Deus e herdeiros do reino dos céus. Sereis bem-aventurados quando vos perseguirem por causa do Reino e por causa de mim. Ao apontar-nos esta realidade violenta e até trágica Jesus insere-nos na esteira e na longa tradição dos profetas de Israel, insere-nos na sua própria experiência de vida, porque afinal ninguém pode ser maior que o mestre, ninguém pode querer passar pela salvação sem passar pela cruz, ninguém pode querer viver a fidelidade sem experimentar o combate.
Esta Bem-Aventurança é uma interpelação radical ao seguimento, a uma consciência dessa realidade violenta inerente ao seguimento de Jesus mas sem a qual não é possível a construção do Reino de Deus, porque como nos disse em outro momento a opção por ele, por Jesus, implica a violência e a divisão, o colocarem-se dois contra três, pais contra filhos, amigos contra amigos. O seguimento de Jesus não se compagina com outros seguimentos, a fidelidade à sua pessoa não se compadece com outras fidelidades.
Uma vez mais podemos interrogar-nos sobre a vivência destas palavras de Jesus, desta Carta Magna, da sua dimensão utópica e da nossa fragilidade e incoerência face a ela. Contudo, os santos que hoje celebramos mostram-nos que em diversas circunstâncias, nas mais diversas realidades, familiar, missionária, contemplativa, política, universitária, laboral, é possível viver as Bem-Aventuranças, necessitamos apenas estar atentos aos sinais dos tempos e dispor-nos à aceitar a vontade de Deus em nós, a ser pobres para com Deus e humildes para com os irmãos.
Boa noite Frei José Carlos,
ResponderEliminarÉ particularmente enriquecedora a catequese que nos oferece nesta sua Homilia da Solenidade de Todos os Santos, ao conduzir-nos ao desejo da imitação dos eleitos do Senhor na vivência das Bem-Aventuranças. Ao aceitarmos a vontade de Deus em nós, no amor do Pai e dos irmãos, seremos um só coração e uma só alma no caminho para a verdadeira felicidade.
Tenha uma santa noite,
GVA
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Homilia da Solenidade de Todos os Santos que partilha connosco está elaborada com tanta profundidade, detalhe e beleza que não ouso fazer qualquer comentário, ou melhor centrar-me somente em alguma(s) parte (s). É um texto de grande coerência, de doutrina, de grande clareza, é um “programa de vida” que me levará a relê-la sempre que sentir necessidade espiritual e a partilhá-la com amigos (as). Não consigo dizer se alguma “Bem-Aventurança” me interpelou de forma especial. Todas me tocam particularmente.
Obrigada por nos recordar que ...” O seguimento de Jesus não se compagina com outros seguimentos, a fidelidade à sua pessoa não se compadece com outras fidelidades.”
Permita-me que faça também minhas as palavras com que o Frei José Carlos termina a Homilia …”Uma vez mais podemos interrogar-nos sobre a vivência destas palavras de Jesus, desta Carta Magna, da sua dimensão utópica e da nossa fragilidade e incoerência face a ela. Contudo, os santos que hoje celebramos mostram-nos que em diversas circunstâncias, nas mais diversas realidades, familiar, missionária, contemplativa, política, universitária, laboral, é possível viver as Bem-Aventuranças, necessitamos apenas estar atentos aos sinais dos tempos e dispor-nos à aceitar a vontade de Deus em nós, a ser pobres para com Deus e humildes para com os irmãos.”
Um grande obrigada por esta importante partilha. Bem haja.
Um abraço fraterno
MJS