domingo, 21 de novembro de 2010

Homilia do XXXIV Domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei

Terminamos o ano litúrgico com a celebração da Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo, uma celebração que já ao longo do ano fomos entrevendo quando celebrámos a visita dos reis magos para adorar o menino, quando entrámos com Jesus triunfalmente na cidade de Jerusalém no domingo de ramos, quando a pecadora derramou sobre a sua cabeça um valioso vaso de perfume, quando nas parábolas do Reino nos confrontámos com o rei que entrega os seus bens aos administradores para que eles os façam frutificar e render.
São acontecimentos que traduzam e manifestam a realeza de Jesus e que à primeira vista se distanciam da leitura do Evangelho desta solenidade, pois com o relato da crucifixão nada parece evidenciar a realeza de Jesus que hoje celebramos, bem pelo contrário, o que se nos depara é a humilhação, a fraqueza, um homem condenado e sem qualquer sinal de poder ou força real.
Contudo, se a liturgia e a Igreja nos apresenta este Evangelho e este momento culminante da vida de Jesus é porque de facto aqui e agora se manifesta a verdadeira dimensão do poder de Jesus, da sua força e consequentemente da sua realeza. É necessário assim acompanhar e perceber a manifestação que se nos depara escondida sob a violência e a tragédia da morte na cruz.
Neste sentido temos que constatar que por três momentos Jesus é sujeitado à tentação, à tentação do poder imediato mas sem qualquer repercussão no futuro e no projecto salvador da Deus. É a última tentação e que é apresentada de três modos diferentes, por três intervenientes diferentes.
O primeiro desses intervenientes são os chefes de Israel, aqueles que momentos antes o tinham condenado e entregue à morte. Perante a crucifixão interpelam Jesus no sentido de se manifestar como Messias, apresentando as suas credenciais messiânicas libertando-se da cruz. É uma interpelação carregada de hipocrisia, pois reconhecem que Jesus tinha já realizado sinais de salvação, do Messias que esperavam, mas que teimosamente se tinham recusado a aceitar. Pedem portanto um sinal, uma revelação que antecipadamente já está escusada, porque aceitá-la significava aceitar uma alteração em toda a sua vida, uma transformação dos esquemas e das estruturas em que se enquadravam e das quais derivava o seu poder e o seu prestigio.
Os segundos intervenientes que interpelam Jesus no sentido de se manifestar como rei de Israel são o grupo dos soldados romanos. Habituados a combater, a lutar contra outros reis esperavam um combate com aquele sobre cuja cabeça estava escrito “este é o rei de Israel”, ou pelo menos com os seus apoiantes que poderiam tentar libertá-lo. Os soldados esperam e interpelam Jesus no sentido de uma manifestação do poder militar, do poder da violência capaz de conquistar e esmagar os outros. Não é uma interpelação, um desafio descabido, para homens habituados à guerra, à violência e face a um letreiro que nomeava Jesus como rei de um povo e de um território conquistado.
O terceiro interveniente a interpelar Jesus no sentido de se manifestar no seu poder é um dos malfeitores crucificados com ele, um homem condenado à morte e ao suplício da cruz, mas que espera e deseja ainda uma reviravolta na sua situação. Neste sentido faz a Jesus um pedido que por um lado está marcado pela verdade do mistério que se está a desenrolar, “salva-nos a nós”, mas que por outro lado enferma do mal que inviabiliza a resposta ao pedido, “salva-te a ti mesmo”.
É esta dimensão pessoal que encontramos nas três interpelações que as transformam em tentação e as conduzem à impossibilidade, à inviabilidade, porque Jesus não necessitava salvar-se a si mesmo, não era por essa razão que ele estava ali, não era dessa forma que ele dava cumprimento ao que tinha sido a sua vida, ao que era o objectivo final do mistério da encarnação. Jesus podia descer da cruz, manifestar-se no seu poder messiânico, real e divino, mas traria essa manifestação algum resultado positivo ao projecto salvador de Deus, ao projecto de reconciliação de todas as coisas com Deus de que fala São Paulo na sua Carta aos Colossenses?
É contudo neste impasse, nesta tragédia, que se manifesta a realeza de Jesus, o seu poder, quando o outro supliciado com Jesus lhe pede “lembra-te de mim quando vieres na tua realeza”. O chamado bom ladrão interpela Jesus já não no sentido de se salvar a si mesmo, mas no sentido da salvação da humanidade, no sentido do mistério da encarnação, porque ao pedir-lhe por si, que se recorde de si, o bom ladrão está a pedir e a recordar a Jesus toda a humanidade pecadora, essa humanidade pela qual ele tinha aceitado dar a vida.
Neste quadro trágico e violento da crucifixão o bom ladrão é o único capaz de reconhecer sob a dimensão humana, esmagada, ultrajada e sem quase aparência de homem, aquele que tinha aceite resgatar essa humanidade condenada, aquele que de facto tinha o poder sobre todas as coisas e que o manifestava não ostensivamente, violentamente, sobranceiramente, mas através do serviço humilde e silencioso da entrega da vida. Através da misericórdia e da justiça para com a situação de Jesus, assumindo inconscientemente o projecto salvífico e misericordioso de Jesus, aquele homem é capaz de reconhecer o erro que se cometia e a verdadeira dimensão da realeza que se escondia.
Quase poderíamos dizer que na cruz o bom ladrão assume como que o papel de anjo da guarda de Jesus, pois afasta-o da tentação da salvação pessoal a que as outras interpelações o orientavam e recondu-lo à centralidade da sua vida e missão, a salvação da humanidade que tinha assumido encarnar com todas as suas debilidades como meio para a prossecução da redenção.
E perante este reconhecimento da sua natureza, da sua missão, Jesus responde ao bom ladrão que naquele mesmo dia estaria no paraíso, ou seja participaria da sua glória. O paraíso de Deus não é assim uma realidade futura, algo distante, mas uma realidade presente e actual, uma realidade na qual todos nós podemos participar na medida em que partilhamos a condição de Jesus e reconhecemos na sua encarnação, com o mistério da sua paixão e morte inerentes, a salvação reconciliadora de Deus com a humanidade.
Perante a cruz e toda a dimensão de humilhação ali patente é fácil cair na tentação de não reconhecer ali a presença de Deus, é fácil cair na tentação de interpelar Jesus no sentido de uma manifestação mais ao nosso agrado, poderosa, portentosa, mesmo na nossa vida e nos seus acontecimentos e necessidades, esquecendo-nos que a reconciliação de todas as coisas com Deus se fez com o sangue derramado, na humildade e na entrega, e que o poder de Jesus e a sua realeza assentam no mistério de ser carne da nossa carne e ossos dos nossos ossos, nosso irmão, como o rei David o era de todas as tribos de Israel.
Lembra-te de nós Senhor quando vieres no teu reino, na tua realeza lembra-te que quiseste ser um de nós para que nós pudéssemos ser um como tu, que quiseste ser homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus como tu, herdeiros contigo do reino do paraíso.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,
    Na Homilia que connosco partilha neste XXXIV Domingo do Tempo Comum – Solenidade de Cristo Rei lembra-nos que ... “se a liturgia e a Igreja nos apresenta este Evangelho (Lc 23, 35-43) e este momento culminante da vida de Jesus é porque de facto aqui e agora se manifesta a verdadeira dimensão do poder de Jesus, da sua força e consequentemente da sua realeza”.
    Permita-me que cite alguns excertos desta bela e profunda Homilia que escreveu e que ilustram a realeza de Jesus …”Neste quadro trágico e violento da crucifixação o bom ladrão é o único capaz de reconhecer sob a dimensão humana, esmagada, ultrajada e sem quase aparência de homem, aquele que tinha aceite resgatar essa humanidade condenada, aquele que de facto tinha o poder sobre todas as coisas e que o manifestava não ostensivamente, violentamente, sobranceiramente, mas através do serviço humilde e silencioso da entrega da vida. Através da misericórdia e da justiça para com a situação de Jesus, assumindo inconscientemente o projecto salvífico e misericordioso de Jesus, aquele homem é capaz de reconhecer o erro que se cometia e a verdadeira dimensão da realeza que se escondia.” (…)
    “E perante este reconhecimento da sua natureza, da sua missão, Jesus responde ao bom ladrão que naquele mesmo dia estaria no paraíso, ou seja participaria da sua glória. O paraíso de Deus não é assim uma realidade futura, algo distante, mas uma realidade presente e actual, uma realidade na qual todos nós podemos participar na medida em que partilhamos a condição de Jesus e reconhecemos na sua encarnação, com o mistério da sua paixão e morte inerentes, a salvação reconciliadora de Deus com a humanidade”.
    O Reino de Deus tem uma dimensão espiritual e como cristãos temos a responsabilidade nas nossas vidas e em todas as dimensões de contribuir para a construção desse Reino, dando testemunho do Evangelho, na procura da Verdade e do Bem.
    Que o texto que preparou para esta Homilia seja também para nós uma oportunidade para reflectir, para nos interrogarmos sobre os nossos comportamentos, as nossas atitudes.
    Oremos com o Frei José Carlos ...” Lembra-te de nós Senhor quando vieres no teu reino, na tua realeza lembra-te que quiseste ser um de nós para que nós pudéssemos ser um como tu, que quiseste ser homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus como tu, herdeiros contigo do reino do paraíso.”
    Obrigada pela partilha. Bem haja.
    Desejo ao Frei José Carlos uma boa semana.
    Um abraço fraterno
    Maria José Silva

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  2. Boa noite Frei José Carlos,
    Amadurecida a sua tão bem elaborada homilia, purifiquemos o nosso coração,para que venha a nós o Seu Reino pela entrega dos nossos dias, das nossas tarefas mais difíceis, pelo perdão oferecido com Ele possamos ser herdeiros do Reino do Paraíso.
    Tenha uma santa noite,
    GVA

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