domingo, 7 de novembro de 2010

Homilia do XXXII Domingo do Tempo Comum

Uma vez mais Jesus vê-se confrontado com uma provocação, desta feita da parte do grupo dos saduceus, um grupo que como nos diz o Evangelho de São Lucas não acreditava na ressurreição. Era um grupo influente, pois era dele que saía a classe dirigente de Israel ao tempo de Jesus. Era um grupo que se opunha também aos fariseus que apesar de todas as suas falhas e incoerências acreditava na ressurreição, ainda que construída à imagem e semelhança da vida presente, e com os quais Jesus estava muito mais próximo socialmente do que com o grupo dos saduceus.
A provocação que os saduceus colocam a Jesus, partindo da sua descrença na ressurreição, fundamenta-se na lei da “halizah”, um preceito da Lei de Moisés que encontramos no Deuteronómio, segundo a qual o irmão do defunto era obrigado a casar com a viúva de modo a assegurar-lhe descendência e a continuidade do nome. É uma regulamentação de uma prática que encontramos em outras culturas, a do levirato, uma prática não só desrespeitadora da liberdade da mulher mas sobretudo da sua dignidade.
O exagero da história não fará duvidar Jesus nem por um momento sobre a resposta a dar, o nosso Deus é um Deus de vivos e não de mortos. Resposta que Jesus fundamenta na tradição anterior, numa lei muito mais ancestral que é a dos patriarcas e a forma como eles tratavam e falavam de Deus, Deus de meu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob.
Estamos assim perante uma afirmação completamente paradigmática da realidade de Deus e da nossa própria realidade, ou seja, não temos um Deus de mortos ou para a morte mas um Deus vivo no qual nos integramos enquanto vida. E se a morte faz inevitavelmente parte da nossa vida, da nossa realidade histórica, não é por vontade de Deus, mas pela própria circunstância do pecado e da ruptura de vida que ele provoca.
Enquanto cristãos e baptizados em Jesus Cristo, Senhor da vida e vencedor da morte, esta realidade de vida e seres vivos é ainda mais fundamental, ontológica, porque no baptismo somos mergulhados na sua morte, fazemos essa experiência, para renascermos para uma vida nova, a vida da graça, a vida ressuscitada de Jesus ressuscitado. Pelo baptismo somos inevitavelmente seres vivos para a eternidade e ainda que o pecado faça as suas rupturas mortíferas, Deus não poderá retirar-nos a vida entregue, não poderá deixar de manter viva essa vida recebida no seu Filho, com tudo o que ela encerra de dom e de necessidade de transfiguração pela nossa condição pecadora e rupturas provocadas.
E é nesta dupla dimensão de dom e necessidade que se joga a vida futura, a vida eterna, aquela vida de que fala Jesus que é a vida da ressurreição, na qual já não haverá realidades humanas, estruturas e relações, em que seremos como anjos, em que seremos definitiva e completamente filhos de Deus, Deus.
O dom da vida física e histórica e os demais dons recebidos por Deus não poderão ser desperdiçados, não poderão ser esbanjados, porque como nos foi dito por Jesus várias vezes teremos que prestar conta deles. Assim, ao orientarmos a nossa vida histórica e as nossas relações devemos ter presentes o quanto estamos a ser fiéis a esses dons, a construir alguma coisa com eles, o quanto estão a contribuir para que a nossa dimensão de eternidade se traduza no tempo presente.
Por outro lado não podemos deixar de cuidar e ter em atenção a necessidade de nos curarmos das feridas das nossas rupturas, da morte que vamos provocando em nós e nos outros com o pecado. A fé na ressurreição, na vida eterna e num Deus de vivos obriga-nos a uma transfiguração, a um assumir cada vez mais consciente e coerente da dimensão da nossa finitude histórica e do germe de vida eterna que transportamos em nós.
Olhando para a praxis desta dupla dimensão, temos que assumir que pela vida eterna nos devemos obras de eternidade, obras que tenham uma marca e um desejo de eternidade, que nos devemos o amor e a esperança que Deus coloca em nós. À luz da Eucaristia devemos ser pão e corpo que alimenta e ampara o outro na sua caminhada à luz da eternidade. Por outro lado devemos exercer uma vigilância e um cuidado sobre nós próprios e até sobre o nosso corpo físico de modo a que nos aproximemos cada vez mais puros, cada vez mais alvos, e vivos, da fonte da vida que nos anima. E ainda que tenhamos que martirizar o nosso corpo, entregá-lo como escória, fazemo-lo com essa confiança de que o receberemos pleno de glória, luminoso, corpo ressuscitado.
Procuremos então, e seguindo o conselho de São Paulo aos Tessalonicenses, viver na esperança e na firmeza da fidelidade de Deus, traduzindo com toda a espécie de boas obras e palavras, a vida eterna do amor que foi colocada nos nossos corações.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Na Homilia do XXXII Domingo do Tempo Comum aborda, com base no Evangelho de S.Lucas (20, 27-38), de maneira muito profunda, um tema complexo, da nossa condição humana, a morte e a vida para além da morte, “este grande mistério da vida cristã”. E se me permite passo a citá-lo, extraindo alguns excertos que mais me sensibilibilizaram ...” E se a morte faz inevitavelmente parte da nossa vida, da nossa realidade histórica, não é por vontade de Deus, mas pela própria circunstância do pecado e da ruptura de vida que ele provoca.
    Enquanto cristãos e baptizados em Jesus Cristo, Senhor da vida e vencedor da morte, esta realidade de vida e seres vivos é ainda mais fundamental, ontológica, porque no baptismo somos mergulhados na sua morte, fazemos essa experiência, para renascermos para uma vida nova, a vida da graça, a vida ressuscitada de Jesus ressuscitado. Pelo baptismo somos inevitavelmente seres vivos para a eternidade e ainda que o pecado faça as suas rupturas mortíferas, Deus não poderá retirar-nos a vida entregue, não poderá deixar de manter viva essa vida recebida no seu Filho, com tudo o que ela encerra de dom e de necessidade de transfiguração pela nossa condição pecadora e rupturas provocadas”.
    E recorda-nos que somos responsáveis pelos dons que Deus nos concedeu …”O dom da vida física e histórica e os demais dons recebidos por Deus não poderão ser desperdiçados, não poderão ser esbanjados, porque como nos foi dito por Jesus várias vezes teremos que prestar conta deles.”… “A fé na ressurreição, na vida eterna e num Deus de vivos obriga-nos a uma transfiguração, a um assumir cada vez mais consciente e coerente da dimensão da nossa finitude histórica e do germe de vida eterna que transportamos em nós.”
    Que Jesus nos encoraje a prosseguir o Caminho com uma fé sempre renovada, vivendo no dia a dia, os ensinamentos de Jesus Cristo, na esperança de uma verdadeira vida.
    Obrigada por esta bela Homilia que nos ajuda a interpretar melhor um tema tão difícil. Bem haja.
    Um abraço fraterno
    MJS

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