Já não é a primeira vez que nos deparamos na
narração dos Evangelhos com situações de equívoco em relação a Jesus. O Evangelho
de São João parece, por vezes, que se construiu sobre essas situações e por isso
na leitura deste domingo nos voltamos a encontrar com uma situação dessas.
Depois da multiplicação dos pães, e sabendo que o
procuravam para fazer rei, Jesus refugiou-se no monte sozinho, deixando os discípulos
embarcarem para a outra margem. Pouco depois encontra-se com eles também ali,
na pequena aldeia de Cafarnaum. Entretanto, a multidão, que tinha sido saciada
pelo pão, vem também até ali à sua procura e encontra-o.
Este episódio, e nomeadamente esta busca, estão construídos
sobre um mal-entendido, sobre a equivocação da multidão, que procura Jesus
pelas razões erradas. Para acentuar e enquadrar de forma mais incisiva este
equívoco, as acções são desenvolvidas em lugares muito diferentes,
encontrando-se em primeiro lugar Jesus no monte, onde multiplica o pão para a
multidão, e na sinagoga de Cafarnaum, onde confronta essa mesma multidão com a
necessidade de outro alimento.
A escolha do lugar, a transferência do monte para a
sinagoga não é um mero acidente, um acaso, é certamente uma escolha de Jesus,
ou no mínimo do autor do quarto Evangelho, e visa colocar as acções de Jesus em
paralelo e complementaridade.
Não é suficiente seguir Jesus apenas pela
satisfação da fome, da necessidade física, não se pode construir uma relação
pessoal com o Mestre fundada apenas num acontecimento extraordinário,
sensacional. A sinagoga, na qual Jesus se encontra com a multidão que o tinha procurado,
é o sinal da necessidade de uma relação enquadrada, uma relação construída e
estruturada à luz da lei da Aliança e dos Profetas.
E a multidão percebeu perfeitamente a mensagem e a
necessidade, quando perguntou a Jesus sobre o que fazer para participar nas
obras de Deus. De facto, não estamos perante uma multidão analfabeta da
linguagem que Jesus utiliza, nem dos milagres que realiza.
Bem pelo contrário, estamos diante de uma multidão
que desde o berço tinha escutado as promessas feitas ao povo, que desde sempre
conhecia a história das manifestações de benevolência de Deus, e por isso o
confronto do pão que Jesus tinha dado com o pão com que o povo se tinha
alimentado no deserto.
Contudo, e apesar deste conhecimento, e tal como
tinha acontecido no deserto e ao longo de tantos outros acontecimento da
história, a multidão não se satisfez com a manifestação extraordinária em que
tinha participado e exigiu outros sinais. A multiplicação dos pães não tinha
sido suficiente para que se pudesse acreditar.
E neste aspecto, Jesus não está em descordo com a
multidão, bem pelo contrário partilha da mesma opinião, centrando no entanto o
pedido não num acto ainda mais extraordinário mas no que é verdadeiramente
essencial, na sua pessoa, na fé em Deus e naquele que era o seu enviado.
A história da relação de Deus com os homens, que encontramos
na Sagrada Escritura, é afinal também a história do grande problema do homem
face às manifestações de Deus, a história da falta de confiança e fé, de um
conjunto de exigências que conduzem mais ao sensacional e ao extraordinário,
que ao essencial e fundamental, a relação confiante em Deus.
O acontecimento que nos é narrado por São João, no
trecho do Evangelho que escutámos, é assim mais um nesta longa história que nos
marca de falta de fé, de falta de confiança em Deus, de equivocação entre o
extraordinário e o fundamental, entre aquilo que nos afasta de Deus ou nos
conduz à sua intimidade e coração.
Procuremos pois, como nos recomenda Jesus através
das palavras dirigidas àquela multidão, acreditar e confiar naquele que Deus
enviou, o Filho muito amado, e que pela sua obediência e amor nos revelou o quanto
Deus nos ama, o quanto Deus não se cansa de nos procurar e de confiar em nós,
ainda que nós nos afastemos dele e tantas vezes faltemos na confiança que lhe é
devida.
Deus convida-nos a uma amizade, a uma relação de
intimidade, uma relação que nos alimenta e faz viver, à disponibilidade do
acolhimento do seu dom, ao contrário do espectáculo do sensacional e
extraordinário que apenas nos ofusca e nos distrai do que é fundamental.
Que saibamos, com a luz do Espirito Santo, acolher
a obra de Deus em nós, optando pela confiança humilde e simples que se alimenta
na Palavra e no Pão da Vida.
Ilustração: “O Bom Pastor”, de Frei Carlos, Museu
Nacional de Arte Antiga.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Homília do XVIII Domingo do Tempo Comum que teceu e partilha é profundo nas palavras e na ilustração tão apropriada que escolheu.
Como nos salienta ...”O acontecimento que nos é narrado por São João, no trecho do Evangelho que escutámos, é assim mais um nesta longa história que nos marca de falta de fé, de falta de confiança em Deus, de equivocação entre o extraordinário e o fundamental, entre aquilo que nos afasta de Deus ou nos conduz à sua intimidade e coração. (…)
(...) Deus convida-nos a uma amizade, a uma relação de intimidade, uma relação que nos alimenta e faz viver, à disponibilidade do acolhimento do seu dom, ao contrário do espectáculo do sensacional e extraordinário que apenas nos ofusca e nos distrai do que é fundamental.”
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, por exortar-nos a …” Que saibamos, com a luz do Espirito Santo, acolher a obra de Deus em nós, optando pela confiança humilde e simples que se alimenta na Palavra e no Pão da Vida.”
Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe. Votos de uma boa semana.
Bom descanso.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe de novo um poema de Frei José Augusto Mourão, OP
a vida é mais do que a vida
a vida é mais do que a vida/cinzenta, crua, vingativa/ a vida é mais do que a vida/
se testemunha da Fonte de onde corre/e do júbilo de existir//
a vida fala do que a transporta/da fé a que todo o Amor se arrima/a vida fala do que a transmuda/
e do devir que não nos prende à prisão do tempo//
por isso nos reunimos/navegando nos olhos uns dos outros/para olhar através da janela de cada casa/
e cada rosto/
o Aberto, a paz-desejo//
cure-nos a água da tua misericórdia/da cegueira do suficiente e do proselitismo/
rompa o teu Sopro as cortinas/da casa murada e defendida/ do medo que nos tolhe e até a alegria rouba//
e que a Palavra nos aproxime/daquilo que do bem e da beleza nos afasta
(In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)