A leitura do Evangelho deste domingo é a conclusão do capítulo sexto
do Evangelho de São João, um capítulo que temos vindo a acompanhar nos últimos
domingos e que se inicia com o milagre da multiplicação dos pães.
Encontramo-nos assim, ao finalizar o capítulo, com um contraste
tremendo entre a multidão de mais de cinco mil homens, sem contar mulheres e
crianças, que foram alimentadas pelo pão do milagre, e um pequeno grupo que
permanece depois da apresentação de Jesus como o verdadeiro pão que pode saciar
os homens.
Se após a multiplicação dos pães procuram Jesus para o fazer rei, uma
vez que lhes tinha saciado a fome física que transportavam, após a apresentação
do verdadeiro Pão do Céu e da exigência de conversão de vida que tal alimento
implicava essa mesma multidão vira as costas a Jesus.
Como nos diz o Evangelho eram palavras duras, palavras que provocaram
o escândalo, porque jogavam com realidades que se apresentavam diante de todos
eles, como a humanidade de Jesus e o conhecimento da sua família, e entravam em
conflito com as palavras de Jesus, como o anúncio da sua identidade divina e
missão salvadora.
E é perante este desafio, esta pedra de tropeço, que Jesus assume na sua
totalidade e radicaliza ainda mais com a referência à elevação do Filho do
homem, e que não podemos deixar de associar à morte na cruz, que aparece a
questão fulcral do seguimento: “também vós quereis ir embora?”
À oferta de Jesus, à apresentação do dom do Pão da Vida, corresponde
assim a necessidade de uma resposta, de uma adesão, de um acolhimento. E perante
o abandono de muitos dos seus discípulos Jesus coloca a questão ao grupo restrito
dos doze. É necessário saber se também para eles o anúncio tinha sido
escandaloso, se tinha abalado a sua fé.
Ao longo da história da salvação descobrimos como afinal essa tem sido
muitas vezes a pergunta de Deus aos homens, se a forma como Deus se tem revelado
provoca no homem o escândalo e a rejeição, quando naturalmente deveria provocar
a alegria e a expectativa face ao Deus que se apresenta e dá a conhecer.
Deus apresenta-se, revela-se e dá-se a conhecer e espera que o homem
criado à sua imagem e semelhança seja capaz de o reconhecer e de o acolher, de
sentir que não tem diante de si um inimigo nem um adversário, mas alguém que
ama profundamente a sua obra.
E neste processo, a liberdade do homem, de cada homem e da humanidade,
é um valor inalienável, imprescindível, porque de contrário o homem deixaria de
ser imagem e semelhança de Deus. É a liberdade de uma resposta positiva ou
negativa que constitui o homem diante de Deus como uma entidade passível de uma
relação.
Jesus, como Filho de Deus, não pôde deixar de se colocar na mesma base
de princípios e por isso a pergunta, certamente desalentada, aos doze, se
queriam continuar ou ir-se embora como os outros. E tal como aos doze, Jesus
continua a fazer a mesma pergunta a cada um de nós, na expectativa que a nossa
resposta seja como a de Pedro, “ a quem iremos Senhor, se tu tens palavra de
vida eterna”.
Esta resposta, humilde e comprometida de Pedro, não pode deixar de ser
vista como um verdadeiro salto na fé, um apostar num desconhecido, que só pela
graça do Espirito Santo é possível. E isto, porque Pedro conclui a sua adesão a
Jesus manifestando a fé numa realidade que humanamente lhe era impossível afirmar,
“tu és o Santo de Deus”.
Podemos por isso dizer que o capítulo sexto de São João e o drama
entre a deserção dos que se escandalizam e aqueles poucos que permanecem se
joga nessa expressão e neste título cristológico.
Jesus começa por se afirmar como “Filho do Homem”, depois diz-se “Enviado
do Pai”, afirma-se “Pão da Vida”, e por fim “Filho do Pai”. Jesus apresenta-se
como dom, como possibilidade de relação, oferece-se na sua identidade possível ao
conhecimento e à realidade humana. Aqueles que o acolhem e aceitam nessa
possibilidade de relação adquirem a capacidade de o poder reconhecer como “Santo
de Deus”, de o poder identificar e dizer com o título supremo de todos os
títulos, aquele que pertence a Deus em exclusivo.
Estamos assim face a um processo no qual todos estamos envolvidos, ou
somos convidados a envolver-nos, ou seja, de na nossa liberdade acolher Jesus
Cristo como o Pão da Vida, como aquele que pode saciar a nossa fome e o nosso
desejo mais profundo e íntimo, confiantes que tal acolhimento nos conduz ao fim
supremo e à essência mais envolvente de Deus que é a sua própria santidade.
Ilustração: “Jesus institui a Eucaristia”, de José Teófilo de Jesus,
Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.
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