São Mateus conta-nos que um dia, já em plena
realização da missão messiânica, Jesus foi à sua terra, à terra que o tinha
visto crescer e na qual se encontrava a sua mãe, a sua família e o seu clã
patriarcal.
Diante desta realidade foi fácil identificá-lo e colocá-lo
em relação com aqueles que se encontravam presentes, bem como questionar o
poder e a autoridade para fazer o que fazia. Eles conheciam-no e conheciam a
sua família, ainda que se apresentasse numa outra situação totalmente díspar a
esse conhecimento.
Aquele Jesus que se lhes apresentava e ensinava na
sinagoga, que curava os doentes, sendo o mesmo que desde sempre conheciam, era no
entanto outro, completamente outro, na medida da descoberta da sua filiação
divina e da missão profética a que tinha sido chamado. A identidade da
experiência familiar e local tinha sido ultrapassada pela identidade da relação
divina.
E aqueles homens e mulheres não foram capazes de
vislumbrar a diferença, de dar o salto necessário, de passar do conhecimento
familiar e histórico para uma relação igualmente divina, para um conhecimento
fundado na palavra nova que escutavam.
Por causa desta incapacidade, da indiferença face à
nova identidade, Jesus não pôde fazer ali muitos milagres nem operar muitas
curas, pois tinham-se escandalizado com ele, não tinham percebido a necessidade
da diferença de relação.
Jesus foi assim obrigado a partir, a dirigir-se
àqueles que estavam dispostos a escutá-lo e a estabelecer com ele uma relação
diferente da tradicional.
Também hoje nos encontramos com homens e mulheres
que não são capazes de olhar para além dos dados históricos, da dimensão física
de Jesus, e por isso são incapazes de estabelecer uma relação com ele. Continuam
a ver apenas o homem, um carpinteiro judeu que um dia se arvorou em messias e
salvador do povo e por causa disso morreu numa cruz.
Por outro lado, encontramos também aqueles homens e
mulheres que, por causa desta mesma morte de Jesus, consideram que o
cristianismo é um atentado à humanidade, e por isso mesmo deve ser banido, deve
ser desacreditado. É necessária a morte de Deus para que o homem possa ser e
viver completamente livre.
Face a tais posições, a nossa fé, a nossa relação
com Deus, enfrenta muitas vezes duros combates, duras discussões, em que
passamos por imaturos, analfabetos, criaturas menores que necessitam ainda de
um ópio alienante para enfrentar as dificuldades e o sofrimento da vida.
Não são combates modernos, os mártires da Igreja já
passaram por eles, mas tal como São Paulo souberam onde estava sua força,
souberam que a cruz seria sempre um motivo de escândalo para os incrédulos e
motivo de salvação e conforto para os crentes, para aqueles que são capazes de
estabelecer uma relação pessoal com Jesus.
Também nós somos convidados a perceber a diferença
e a manter firme a nossa fé, a nossa confiança, a construir uma relação com um
Deus que se fez homem como nós e por isso se situa num espaço e num tempo, mas
enquanto homem não perdeu a sua natureza divina e nem a morte que sofreu o afectou
na sua divinidade salvadora.
Ilustração: “A casa de Nazaré”, de John Everett
Millais. Tate Gallery, Londres.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Meditação que teceu leva-nos a reflectir no paralelismo que estabelece no que aconteceu a Jesus na deslocação à terra que o tinha visto crescer, o que aconteceu ao longo dos séculos e na actualidade. O projecto de Deus não tem sido compreendido por razões diferentes ao longo dos tempos, no qual o facto de não corresponder às expectactivas e interesses de certos grupos ou à não satisfação dos nossos desejos, ambições, necessidades, é mais fácil voltar as costas, abandonar, e não travarmos um combate interior que nos leva ao estabelecimento de uma relação com Jesus, à participação na construção do projecto que Deus nos oferece nesta vida e no futuro.
O projecto de Deus é incómodo e a essência das razões da rejeição da Palavra, dos Ensinamentos de Jesus, no presente são as mesmas que existiam no tempo em que Jesus com os discípulos realizava a sua missão.
Como nos afirma ...” a nossa fé, a nossa relação com Deus, enfrenta muitas vezes duros combates, duras discussões, em que passamos por imaturos, analfabetos, criaturas menores que necessitam ainda de um ópio alienante para enfrentar as dificuldades e o sofrimento da vida. “…
Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, pela força que nos transmitem, por recordar-nos que ...” Também nós somos convidados a perceber a diferença e a manter firme a nossa fé, a nossa confiança, a construir uma relação com um Deus que se fez homem como nós e por isso se situa num espaço e num tempo, mas enquanto homem não perdeu a sua natureza divina e nem a morte que sofreu o afectou na sua divinidade salvadora.”
Que o Senhor o ilumine, abençõe e proteja.
Bom descanso.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP
vem procurar-nos
Deus que escutas o mundo/e o barulho dos nossos corpos contra o molhe,/vem procurar-nos
ao fundo da nossa noite, /lá onde os fantasmas nos devoram/e as belas palavras nos desmul-
tiplicam/vem procurar-nos, Deus,/ao fundo da nossa profissão de descontentamento/ e de
exploradores de deuses//
não nos entregues aos nossos próprios discursos;/dá-nos antes um corpo de escuta e de desejo/
para que te reconheçamos ao largo das nossas vidas//
livra-nos, Senhor,/do medo de sermos encontrados diante de ti/como uma chaga aberta ou
fonte/e concede-nos que te digamos/com toda a água e todo o sal da nossa vida//
(In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)