sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Jesus foi à sua terra (Mt 13,54)

São Mateus conta-nos que um dia, já em plena realização da missão messiânica, Jesus foi à sua terra, à terra que o tinha visto crescer e na qual se encontrava a sua mãe, a sua família e o seu clã patriarcal.
Diante desta realidade foi fácil identificá-lo e colocá-lo em relação com aqueles que se encontravam presentes, bem como questionar o poder e a autoridade para fazer o que fazia. Eles conheciam-no e conheciam a sua família, ainda que se apresentasse numa outra situação totalmente díspar a esse conhecimento.
Aquele Jesus que se lhes apresentava e ensinava na sinagoga, que curava os doentes, sendo o mesmo que desde sempre conheciam, era no entanto outro, completamente outro, na medida da descoberta da sua filiação divina e da missão profética a que tinha sido chamado. A identidade da experiência familiar e local tinha sido ultrapassada pela identidade da relação divina.
E aqueles homens e mulheres não foram capazes de vislumbrar a diferença, de dar o salto necessário, de passar do conhecimento familiar e histórico para uma relação igualmente divina, para um conhecimento fundado na palavra nova que escutavam.
Por causa desta incapacidade, da indiferença face à nova identidade, Jesus não pôde fazer ali muitos milagres nem operar muitas curas, pois tinham-se escandalizado com ele, não tinham percebido a necessidade da diferença de relação.
Jesus foi assim obrigado a partir, a dirigir-se àqueles que estavam dispostos a escutá-lo e a estabelecer com ele uma relação diferente da tradicional.
Também hoje nos encontramos com homens e mulheres que não são capazes de olhar para além dos dados históricos, da dimensão física de Jesus, e por isso são incapazes de estabelecer uma relação com ele. Continuam a ver apenas o homem, um carpinteiro judeu que um dia se arvorou em messias e salvador do povo e por causa disso morreu numa cruz.
Por outro lado, encontramos também aqueles homens e mulheres que, por causa desta mesma morte de Jesus, consideram que o cristianismo é um atentado à humanidade, e por isso mesmo deve ser banido, deve ser desacreditado. É necessária a morte de Deus para que o homem possa ser e viver completamente livre.
Face a tais posições, a nossa fé, a nossa relação com Deus, enfrenta muitas vezes duros combates, duras discussões, em que passamos por imaturos, analfabetos, criaturas menores que necessitam ainda de um ópio alienante para enfrentar as dificuldades e o sofrimento da vida.  
Não são combates modernos, os mártires da Igreja já passaram por eles, mas tal como São Paulo souberam onde estava sua força, souberam que a cruz seria sempre um motivo de escândalo para os incrédulos e motivo de salvação e conforto para os crentes, para aqueles que são capazes de estabelecer uma relação pessoal com Jesus.
Também nós somos convidados a perceber a diferença e a manter firme a nossa fé, a nossa confiança, a construir uma relação com um Deus que se fez homem como nós e por isso se situa num espaço e num tempo, mas enquanto homem não perdeu a sua natureza divina e nem a morte que sofreu o afectou na sua divinidade salvadora.
 
 
Ilustração: “A casa de Nazaré”, de John Everett Millais. Tate Gallery, Londres.


1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Meditação que teceu leva-nos a reflectir no paralelismo que estabelece no que aconteceu a Jesus na deslocação à terra que o tinha visto crescer, o que aconteceu ao longo dos séculos e na actualidade. O projecto de Deus não tem sido compreendido por razões diferentes ao longo dos tempos, no qual o facto de não corresponder às expectactivas e interesses de certos grupos ou à não satisfação dos nossos desejos, ambições, necessidades, é mais fácil voltar as costas, abandonar, e não travarmos um combate interior que nos leva ao estabelecimento de uma relação com Jesus, à participação na construção do projecto que Deus nos oferece nesta vida e no futuro.
    O projecto de Deus é incómodo e a essência das razões da rejeição da Palavra, dos Ensinamentos de Jesus, no presente são as mesmas que existiam no tempo em que Jesus com os discípulos realizava a sua missão.
    Como nos afirma ...” a nossa fé, a nossa relação com Deus, enfrenta muitas vezes duros combates, duras discussões, em que passamos por imaturos, analfabetos, criaturas menores que necessitam ainda de um ópio alienante para enfrentar as dificuldades e o sofrimento da vida. “…
    Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, pela força que nos transmitem, por recordar-nos que ...” Também nós somos convidados a perceber a diferença e a manter firme a nossa fé, a nossa confiança, a construir uma relação com um Deus que se fez homem como nós e por isso se situa num espaço e num tempo, mas enquanto homem não perdeu a sua natureza divina e nem a morte que sofreu o afectou na sua divinidade salvadora.”
    Que o Senhor o ilumine, abençõe e proteja.
    Bom descanso.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP


    vem procurar-nos


    Deus que escutas o mundo/e o barulho dos nossos corpos contra o molhe,/vem procurar-nos
    ao fundo da nossa noite, /lá onde os fantasmas nos devoram/e as belas palavras nos desmul-
    tiplicam/vem procurar-nos, Deus,/ao fundo da nossa profissão de descontentamento/ e de
    exploradores de deuses//

    não nos entregues aos nossos próprios discursos;/dá-nos antes um corpo de escuta e de desejo/
    para que te reconheçamos ao largo das nossas vidas//

    livra-nos, Senhor,/do medo de sermos encontrados diante de ti/como uma chaga aberta ou
    fonte/e concede-nos que te digamos/com toda a água e todo o sal da nossa vida//


    (In, “O Nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

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