quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Um rei quis ajustar contas com os seus servos (Mt 18,23)

Nada nos parecerá mais normal e correcto, que um rei, um senhor, um proprietário, queira ajustar contas com os seus servos. Se os bens são seus, se a propriedade é sua, é normal e justo que queira aferir dos rendimentos, que queira acertar as contas com aqueles que lhe estão subjugados ou são dependentes.
Jesus, face à pergunta de Pedro sobre o perdão, compara o reino de Deus a um rei que quis ajustar contas com os seus servos e portanto mandou vir à sua presença todos aqueles que lhe deviam. Tendo presente o contexto, a pergunta de Pedro e a resposta de Jesus, é interessante ver como Jesus insere, incorpora o perdão na realidade do Reino, como identifica o Reino com a possibilidade de perdão, o que nos deixa já só por isso um conjunto de reflexões e desafios importantes para a nossa vida.
Mas continuando com a parábola, que Jesus conta para ilustrar esta identificação do Reino com o perdão, vemos como um dos primeiros servos trazido à presença do rei tem uma grande dívida, dez mil talentos, que apenas a venda das suas propriedades e do conjunto família poderá cobrir. Face à divida contraída junto do rei, só mesmo a venda de tudo, e a consequente perda desse tudo, poderá liquidar o montante em causa.
É perante esta desgraça, este aniquilamento cujos contornos são verdadeiramente significativos, pois não são só as propriedades que estão em causa mas também a família, algo verdadeiramente importante para um judeu, que o rei mostra a sua benevolência e generosidade extraordinárias face ao pedido de clemência.
Ao pedido de um prazo e à promessa de pagamento, o rei concede não só a liberdade àquele servo mas perdoa-lhe a própria dívida. O rei faz confiança na palavra daquele que lhe deve, acredita na recepção agradecida da generosidade manifestada, mas que de facto não existe.
E a não existência do reconhecimento do dom e do perdão alcançado manifesta-se imediatamente, quando aquele que estava em dívida para com o rei se encontra com alguém que está em dívida consigo e não é capaz de ter a mesma atitude, ou pelo menos até aproximada.
Também nós funcionamos assim muito frequentemente, sendo para com os outros menos benévolos e generosos do que os outros foram para connosco, do que Deus foi para connosco quando nos ofereceu e oferece o perdão das nossas faltas.
Deus é um rei, um proprietário, que não se importa com a falência e a delapidação do seu património, desde que tal sirva para a descoberta e o encontro com alguém que é mais que um rei, mais que um proprietário ou senhor, é um Pai e um Amigo.
O perdão de Deus das nossas faltas, a misericórdia de Deus para connosco, não prejudica Deus em nada, mas bem pelo contrário possibilita e viabiliza aquilo que de facto enriquece e glorifica Deus, a amizade do homem, o homem vivo que agradece a Deus o seu amor e o seu perdão.
O perdão que vivemos fraternamente, numa semelhança pálida com o perdão de Deus, manifesta a consciência e o reconhecimento do perdão alcançado de Deus. Procuremos pois nas mais diversas situações vivê-lo de modo a manifestar o dom alcançado e a constituir os meus tipos de laços de amizade que Deus estabeleceu connosco ao perdoar-nos.

Ilustração: Jean Corbechon apresenta a tradução do “Livro das Propriedades das Coisas” a Carlos V de França. Iluminura do Livro das Propriedades das Coisas, Biblioteca de França.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Todos precisamos saber perdoar e ser perdoados. No nosso quotidiano, encontramo-nos com pessoas como o homem da parábola e também cada um de nós deve saber assumir que por vezes nos comportamos da mesma forma. Perdoar não é esquecer, é dar novas oportunidades e ter a grandeza interior de não ficar preso às ofensas.
    Ao afirmar-nos que ”Também nós somos para com os outros menos benévolos e generosos do que os outros foram para connosco, do que Deus foi para connosco quando nos ofereceu e oferece o perdão das nossas faltas” leva-me a pensar na dificuldade de passarmos das palavras aos actos e como rezamos tantas vezes sem sentir as palavras que pronunciamos. Pensemos no que pedimos na Oração que o Senhor nos ensinou …”perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,”…
    Como nos salienta ...” O perdão que vivemos fraternamente, numa semelhança pálida com o perdão de Deus, manifesta a consciência e o reconhecimento do perdão alcançado de Deus.”…
    Bem-haja por exortar-nos a que …“ Procuremos pois nas mais diversas situações vivê-lo de modo a manifestar o dom alcançado e a constituir os mesmos tipos de laços de amizade que Deus estabeleceu connosco ao perdoar-nos”.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Meditação, profunda, que leva-nos a reflectir como procedemos sempre que tivemos ou temos que perdoar e não somos capazes de dar todos os passos necessários para “perdoar como Deus nos perdoa “porque perdoar pressupõe amar e ter misericórdia" para com os nossos irmãos.
    Que o Senhor ilumine, abençoe e guarde o Frei José Carlos.
    Continuação de bom restabelecimento e de boa semana. Bom descanso.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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