No final do dia de Páscoa, quando os outros discípulos contam a Tomé o
encontro com Jesus ressuscitado, este não deixa de manifestar as suas
dificuldades em acreditar em algo tão extraordinário. Será necessário o encontro
pessoal com Jesus e o salto do desafio da fé para que o inacreditável se
transforme em verdade crível.
A leitura do Evangelho de São João que escutámos, e que nos conta o
encontro de Jesus com os judeus em Cafarnaum e o chamado discurso do Pão da
Vida, apresenta-nos as mesmas dificuldades em acreditar numa realidade
igualmente extraordinária. Também aqui e uma vez mais será necessário
ultrapassar o desafio da fé.
Desafio que continua a colocar-se a cada um de nós e a toda a
humanidade, razão pela qual não nos pode estranhar que tantos homens e mulheres
se interroguem e coloquem em dúvida aquilo que para nós é uma verdade
fundamental, uma verdade de fé.
As perguntas sobre a incarnação de Deus, sobre a possibilidade de Deus
se rebaixar à nossa humanidade e mortalidade, sobre a sua morte como libertação
e redenção da humanidade, são afinal as perguntas e as dificuldades com que o
próprio Jesus se enfrentou na sua vida e na sua pregação.
São questões fundamentais, questões que obrigam a uma resposta que
apenas o encontro pessoal com Jesus e a consciência de que a sabedoria humana
esbarra nos mistérios que ele mesmo comporta, pode alcançar. É necessária a luz
da sabedoria divina e o dom da fé para encontrar a resposta correcta e
verdadeira.
Neste sentido, e para um encontro mais fácil, não podemos deixar de
ter presente que quando Jesus oferece a sua carne em alimento, como comida, não
está a oferecer a materialidade do seu corpo, a sua carne humana. Tal era
completamente incompreensível para os seus ouvintes, totalmente inaceitável.
De facto, de cada vez que Jesus se refere à sua carne, em perfeita
sintonia com a cultura e tradição bíblica, Jesus está a referir-se à totalidade
da sua pessoa, ao seu ser enquanto homem total. Pelo que comer a sua carne,
aceitar o convite de alimentar-se dele, significa aderir à sua palavra e à sua vida,
significa acreditar nele.
Contudo, esta adesão e este acreditar nele não é apenas unilateral,
não se desenvolve apenas naquele que adere e acredita, porque como Jesus diz
aquele que o incorpora é igualmente incorporado, aquele que acredita é também acreditado.
Comer o Pão do Céu que é o Filho de Deus é ser assumido pelo Filho, é
transformar-se igualmente em pão para Deus.
Santo Agostinho meditando sobre este mistério e a Eucaristia não deixa
de assumir que de facto na comunhão do corpo de Cristo não somos nós que
assimilamos a Cristo mas é Cristo que nos assimila em si, nessa lei da lógica
de que o mais pequeno não pode conter o maior, a criatura não pode apossar-se
do seu criador.
E para que não ficasse qualquer dúvida sobre a natureza da carne que
oferecia aos seus ouvintes, Jesus diz que é a carne que dará pela vida do mundo
a que oferece como alimento. Ou seja, sem qualquer ambiguidade nem
possibilidade de equívoco Jesus remete já para o sacrifício da sua vida, para a
morte na cruz e para essa carne que será encontro e possibilidade de alimento.
Desta oferta, e desta radicalidade, derivaram os murmúrios contra as
palavras de Jesus e a deserção de muitos daqueles que o seguiam e que
consideraram as palavras de Jesus extremamente duras e de difícil aceitação.
Dificuldades que não estão relacionadas com nenhuma questão de
antropofagismo, como à primeira vista podem parecer, mas com a afirmação da
origem divina de Jesus, da dádiva de vida ao mundo, algo só possível a Deus, e
da necessidade escandalosa da morte para que isso pudesse acontecer.
Aqueles homens judeus não são capazes de ultrapassar o conhecimento
mais imediato que têm de Jesus e por isso diante daquelas palavras e da oferta
do dom de Deus, apenas vêem e reconhecem o jovem carpinteiro de Nazaré de quem
eles conhecem também a família e a história.
Face ao escândalo e a este conhecimento Jesus não apresenta qualquer
explicação ou justificação, qualquer clarificação, deixando o desafio como algo
inevitavelmente presente e necessariamente obrigatório.
Comer o Pão da Vida, receber a vida divina, implica assim a adesão e o
acolhimento da humanidade de Jesus, da encarnação como caminho a ser percorrido
para alcançar a vida, bem como a adesão e o acolhimento da sua morte. A nossa
união com o Filho é o acolhimento da vida, e a união na morte é o acolhimento
da imortalidade na nossa mortalidade.
A Eucaristia que celebramos é assim a memória desta oferta do Pão da
Vida, mas igualmente a actualização do dom, para que nunca nos esqueçamos de
como a vida está ao nosso alcance, mais próxima de nós que de Adão estava a
árvore da vida no paraíso.
Ilustração: “São Carlos Borromeu distribuindo a comunhão às vítimas da
peste”, de Tanzio da Varallo, Domodossola.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarO texto da Homília do XX Domingo do Tempo Comum que teceu é profundo, claro e de grandeza beleza espiritual que nos toca de modo particular, ao recordar o dom de Deus, a necessidade de conversão permanente e da oferta do Pão da Vida. Enquanto Filho de Deus, Jesus mantém a afirmação e renova a promessa “quem comer deste Pão e beber deste Vinho tem a vida n’Ele (…) e viverá eternamente”.
Permita-me que cite algumas passagens passagens do texto.
(...) “Desafio que continua a colocar-se a cada um de nós e a toda a humanidade, razão pela qual não nos pode estranhar que tantos homens e mulheres se interroguem e coloquem em dúvida aquilo que para nós é uma verdade fundamental, uma verdade de fé.(…)
(…) De facto, de cada vez que Jesus se refere à sua carne, em perfeita sintonia com a cultura e tradição bíblica, Jesus está a referir-se à totalidade da sua pessoa, ao seu ser enquanto homem total. Pelo que comer a sua carne, aceitar o convite de alimentar-se dele, significa aderir à sua palavra e à sua vida, significa acreditar nele.
Contudo, esta adesão e este acreditar nele não é apenas unilateral, não se desenvolve apenas naquele que adere e acredita, porque como Jesus diz aquele que o incorpora é igualmente incorporado, aquele que acredita é também acreditado. Comer o Pão do Céu que é o Filho de Deus é ser assumido pelo Filho, é transformar-se igualmente em pão para Deus. (…)
(...) Comer o Pão da Vida, receber a vida divina, implica assim a adesão e o acolhimento da humanidade de Jesus, da encarnação como caminho a ser percorrido para alcançar a vida, bem como a adesão e o acolhimento da sua morte. A nossa união com o Filho é o acolhimento da vida, e a união na morte é o acolhimento da imortalidade na nossa mortalidade.”…
Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, pelo desafio e esperança que encerram e nos colocam, pela forma como abordou este mistério, por afirmar-nos que …” A Eucaristia que celebramos é assim a memória desta oferta do Pão da Vida, mas igualmente a actualização do dom, para que nunca nos esqueçamos de como a vida está ao nosso alcance, mais próxima de nós que de Adão estava a árvore da vida no paraíso.”
Votos de uma boa semana com paz e força interior, serenidade e alegria para que o restabelecimento do Frei José José Carlos se concretize . Que o Senhor o cumule de todas as bençãos.
Bom descanso.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que volte a partilhar um poema de Frei José Augusto Mourão, OP
o pão e a palavra
bendito seja Deus/pelo pão e pela palavra/que nos reúnem/das viagens//
dá ao nosso corpo/a alegria dos descobrimentos/e o gosto de continuar/a nossa viagem para ti//
(In, “O nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)