domingo, 30 de janeiro de 2011

Homilia do IV Domingo do Tempo Comum

Quando nos aproximarmos do momento da comunhão, depois da fracção do pão, esse mesmo pão, corpo e sangue do Senhor, ser-nos-á apresentado e ser-nos-á dito “felizes os convidados para a ceia do Senhor, eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. De tantas vezes termos escutado esta Bem-Aventurança e de lhe respondermos que não somos dignos, já nem nos damos conta do que nos é anunciado e de como nos consideramos perante tal anúncio.
Esta Bem-Aventurança Eucarística, e a resposta da nossa indignidade e miséria perante tão grande dom, é uma verdade que justaposta às Bem-Aventuranças que escutámos no Evangelho nos ajuda a compreender e a viver estas mesmas Bem-Aventuranças, pois é à luz da paixão de Jesus, comemorada na Eucaristia, que descobrimos o último e verdadeiro sentido das propostas que o Senhor nos faz nesta Magna Carta do ser cristão.
É na paixão e na cruz de Jesus que se revela a verdadeira pobreza, no que ela tem de despojamento, de nudez, e partilha da condição mortal da humanidade. É na paixão e na cruz que se revela a verdadeira humildade, no que ela tem de aceitação da vontade do Pai, de entrega do espírito nas mãos de Deus. É na cruz que se revela o verdadeiro sentido das lágrimas dos que choram, porque permitem uma nova maternidade, uma mãe entregue a um filho convidado a consolar a perda.
É na paixão e na cruz que se revela a verdadeira fome e sede de justiça quando se aceita padecer e entregar a vida por aqueles que não o merecem e tão pouco se preocupam com essa justiça. É na cruz que se revela a verdadeira misericórdia quando aquele que padece pede perdão ao Pai porque os carrascos e todos os presentes não sabem o que fazem. É na cruz de Jesus que se revela a verdadeira pureza de coração quando um condenado é capaz de defender o inocente e apesar da sua imagem desprezível é capaz de reconhecer nele o filho de Deus e pedir a sua visão na glória.
É na cruz de Jesus que se revela a verdadeira promoção da paz quando pela entrega amorosa e solícita é estabelecida a paz entre Deus e os homens, se rasga o véu do templo e a porta do paraíso é de novo aberta.
Assim, a cada Bem-Aventurança enunciada por Jesus no alto do monte de Cafarnaum podíamos verdadeiramente acrescentar “eis o cordeiro de Deus que tira o pecado mundo”, eis aquele que viveu na sua carne e na sua história estes mesmos enunciados e propostas, e portanto não nos deixa como que um programa politico ou ideológico, mas um mapa para o caminho, uma proposta de vida.
Neste sentido, e à luz da paixão e da cruz, as Bem-Aventuranças não são um elogio ou uma proposta de tranquilidade, de uma passividade beata, de uma aceitação resignada das realidades pelos pobres e fracos como Nietzsche as viu, mas bem pelo contrário, elas apelam a uma atitude concreta, radical, empenhada, a um trabalho árduo e a uma busca de felicidade neste mundo e num sentido contra corrente do que é comum.
Ainda nesta linha, não podemos também falar das Bem-Aventuranças como uma linguagem poética, um belo texto de princípios que necessitam ser inculturados, que necessitam de uma interpretação à luz do dia para poderem ser vividos, talvez um texto moral que devemos louvar mas que não nos afecta muito mais para além do sublime da sua mensagem.
São Paulo, na Carta aos Coríntios e no trecho que também lemos tira-nos qualquer ilusão que possamos ter face a esta concepção e a esta leitura. A Igreja, hoje como no tempo de Corinto, é uma comunidade sem grandes sábios, sem gente influente, sem gente bem-nascida, um povo de pobres e de loucos, um resto como o resto de Israel que vive nas malhas da misericórdia de Deus e O busca nas margens do incompreensível.
Alguém esboçará um sorriso, e pensará no seu coração, que não estou a ver muito bem, que estou desfasado da realidade, que me estou a esquecer do poder da Igreja, das suas influências, das redes de interesses e de toda a máquina institucional em que nos movemos e tantas vezes nos sentimos limitados na nossa expressão e liberdade.
Essa é uma realidade da Igreja, e certamente a necessitar conversão, porque outra é aquela que vive no silêncio contemplativo dos claustros, que vive inserida nos bairros mais pobres, que todos os dias se entrega em caridade a doentes leprosos ou a crianças abandonadas, que vive como sinal de paz em zonas de conflito.
Outra é também a Igreja que se encontra em situação de pobreza, de humilhação e perseguição, realidades que nos aparecem distantes e que rejeitamos pelo incómodo e desconforto que nos provocaria. Outra é a Igreja que se apresenta pura de coração, misericordiosa, casta, que eleva a mãos agradecida para Deus e que a sociedade rejeita porque nos questiona nos valores da vida e no uso que fazemos do outro e do nosso próprio corpo, na nossa auto-suficiência. Outra é a Igreja que tem sede e fome de justiça, que se compromete na construção da paz, que se apresenta como inimiga e ameaça às nossas instalações e esquecimento de todas as formas de exclusão e por isso eliminamos sem apelo.
Nesta Igreja, ou nestas realidades da Igreja que podemos considerar um resto, manifesta-se a cruz de Jesus e vive-se as Bem-Aventuranças, que não são apenas para uns poucos, para uns desgraçados privilegiados, mas que são para todos nós enquanto homens e mulheres que se consideram indignos do dom bem aventurado que Deus lhes oferece de partilha do banquete celeste no Reino de Deus.
Quando Jesus apresenta as Bem-Aventuranças no monte de Cafarnaum o seu auditório não é muito significativo, ele não fala para uma elite, mas para pecadores como Maria Madalena, para rejeitados e cobradores de impostos como Mateus, para pescadores que aspiram à satisfação das suas expectativas de poder, para cegos, coxos e doentes, uma plateia que tem muito pouco de dignificante.
Contudo, se Jesus o faz e lhes apresenta as Bem-Aventuranças é porque quer que nas nossas existências banais, simples e pecadoras estas propostas se façam vida, se façam presentes e transformadoras da realidade, que na nossa vida a santidade possa ser possível. Neste sentido cada um de nós pode viver as Bem-Aventuranças na medida em que vive alguma forma de pobreza, alguma exclusão, alguma injustiça, alguma luta pela verdade, a humildade e a misericórdia, não de uma forma fatalista, revoltada, auto glorificante, mas como oportunidade de encontro com Deus e com o outro, como oportunidade para a experiência humana e finita do banquete infinito da glória divina.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Obrigada pela partilha da Homilia que preparou neste IV Domingo do Tempo Comum. É um texto muito profundo que nos ajuda a interpretar o verdadeiro significado das Bem-Aventuranças e estou grata por haver tido a coragem de ir mais além, lembrando-nos as diversas “realidades da Igreja”, o que nos reconforta, fortalece e anima para continuar a participar na construção do Reino de Deus.
    Como afirma se as Bem-Aventuranças são a “Magna Carta do ser cristão”, (...) mas ... à luz da paixão e da cruz, “as Bem-Aventuranças não são um elogio ou uma proposta de tranquilidade, de uma passividade beata, de uma aceitação resignada das realidades pelos pobres e fracos como Nietzsche as viu, mas bem pelo contrário, elas apelam a uma atitude concreta, radical, empenhada, a um trabalho árduo e a uma busca de felicidade neste mundo e num sentido contra corrente do que é comum”.
    Que a Igreja legislativa donde emanam os “códigos” reconheça nas Bem-Aventuranças o modelo inspirador e aceite que o caminho de muitos cristãos possa ser diferente face à realidade que a humanidade hoje vive, às transformações sociais e familiares que se registam, por forma a que a Igreja que os homens construíram seja um verdadeiro espaço de inclusão, como Jesus ensinou, e deu testemunho, para que muitos cristãos possam viver plenamente as Bem-Aventuranças.
    Bem haja, Frei José Carlos, por nos fazer sentir que ...” cada um de nós pode viver as Bem-Aventuranças na medida em que vive alguma forma de pobreza, alguma exclusão, alguma injustiça, alguma luta pela verdade, a humildade e a misericórdia, não de uma forma fatalista, revoltada, auto glorificante, mas como oportunidade de encontro com Deus e com o outro, como oportunidade para a experiência humana e finita do banquete infinito da glória divina.”
    Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno
    Maria José Silva

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  2. Frei José Carlos,

    Obrigada por esta bela partilha deste Domingo do qual nos fala da mensagem das BEM-AVENTURANÇAS de Jesus colide com os critérios de felicidade que o mundo oferece.E mesmo aos ouvidos de muitos cristãos elas soam a utopia.
    Muitos a consideram reservadas a elites.Não ! As Bem-aventuranças são para todos;todos os que têm coragem de seguir a Crito.
    São mesmo o único caminho de felicidade. É uma questão de fé no Reino de Deus:Vale a pena arriscar.Na pregação de Jesus as Bem-aventuranças faziam parte do seu anúncio do Reino de Deus,dirigido particularmente aos pobres àqueles que,não usufruindo do que material ou socialmente precisavam,suspiravam por uma intervenção de Deus que pusesse fim aos seus males. Felizes sois vós porque o Reino de Deus está perto.Felizes poque pressentiam esse Reino no próprio Jesus;nas mãos que lhes estendia, na comunhão que lhes oferecia.É a todos nós,cristãos,que se dirigemas Bem-aventuranças.Uma entrega de fé que leva a tudo o resto:à humildade,à mansidão,à misericórdia,ao empenho pela paz.Então seremos "perfeitos"n Aquele a quem nos damos;como o Pai celeste é perfeito.É dessa perfeição que fala Jesus no Sermão da Montenha;uma perfeição que o jovem rico,preso como estava aos seus bens,não teve a coragem e a felicidade de arriscar.
    Finalmente,felizes somos não apenas nós,mas também aqueles a quem fazemos o bem.
    Muito grata ao Frei José Carlos por esta tão bela partilha deste texto profundo que me ajudou muito a meditar mais profundamente.
    Bem haja.Um abraço fraterno.
    AD

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