domingo, 19 de maio de 2013

Carta de 1938 de José Nunes Martins para Frei Tomás Maria Videira

Tendo já abandonado o Seminário Dominicano de Mogofores há dois anos, José Nunes Martins mantém uma forte ligação ao seu antigo Superior o Padre frei Tomás Maria Videira. Ainda que a correspondência não seja frequente, como assume nesta carta, não deixa de reconhecer que ficaram marcas indeléveis na sua vida da amizade com o Padre Tomás e da sua passagem pela Ordem, e das quais esta carta é um testemunho eloquente.
 
Caxarias 17-7-938
Meu bom Padre
Ficará admirado ao ver esta minha carta, e com a máxima razão. Julgará talvez que me tinha esquecido de Vossa Reverência; mas ainda não.
É raro o dia em que labutando nos meus negócios, que me não venha à ideia os carinhos que me dedicou, e que eu estava bem longe de os merecer. Julgue que serão poucos os rapazes que tenham convivido com Vossa Reverência que se lembrem tantas vezes de quem tanto os amou, e lhe restem tantas saudades como eu. Foi Vossa Reverência a criatura de quem tive mais pena quando saí desse seminário.
Não o parece; pois nunca lhe tenho escrito. A luta constante da vida não me permite dispor do tempo para escrever; e além disso, também escrevo com muitas dificuldades; por isso queira-me desculpar. Nunca me arrependi de ter saído, porque vejo, hoje, mais do que nunca que me era impossível seguir.
Tenho a dar-lhe, meu querido Padre, uma notícia muito triste que nos junge imensamente. Foi o falecimento do meu Tio Padre que se encontrava em África. Era um dos entes mais queridos da nossa família, e que mais falta nos fazia.
Era para todos nós mais do que um verdadeiro pai. Foi ele que mandou educar as minhas irmãs e irmãos, e que pagou todas as despesas. Tanto assim, que tudo quanto angariava, quanto gastava para o bem da família e de todos os necessitados a quem ele pudesse fazer bem. Esteve na América do Norte; era a segunda vez que estava na África; correu Portugal quase todo, e por toda a parte onde passou foi sempre muito activo. Gostava de ver tudo em ordem.
Antes de ser padre, aprendeu vários ofícios; era principalmente um bom carpinteiro, e um bom sapateiro; pois quando começou a estudar tinha já 27 anos. Ordenou-se aos 37 e faleceu com 57. Teve apenas 20 anos de apostolado. Foi sempre recto e justo em tudo e por tudo; assim o justificam todas as suas boas obras por onde passou, e principalmente a sua santa morte. Faleceu no dia 5 de Junho, dia do Espirito Santo. Segundo se consta, quando guiava um automóvel se despenhou por uma ribanceira, ficando com a espinha quebrada, mas ainda com a faculdade dos sentidos.
Vendo que estava terminada a sua missão sobre a terra, rezou um Terço pelos pretos e o seu Breviário pela última vez; e disse: (morro em paz) e a sua alma tão pura e bela voou para junto de Deus. Faz-nos uma falta incalculável; mas já que Deus assim o permitiu, temos que nos conformar. Soubemos a notícia principalmente por um irmão do Espirito Santo que veio há poucos dias da África, o qual vinha identificado com o bem que ele tinha feito aos pobres pretinhos.
Soube pelo meu irmão que se viram obrigados a despedir por algum tempo os alunos por falta de recursos; o que não me admiro, pois sei o que as despesas são superiores às receitas.
Eu calculo quanto esse facto deve ter sido doloroso a todos, mas principalmente a Vossa Reverência que tantos e tantos sacrifícios tem feito para o bem da Ordem e de todos, e por isso só tenho a dar-lhe os meus sinceros sentimentos, lamentando imenso a amarga situação em que Vossa Reverência se encontra, pois desejo tanto bem à Ordem dominicana como se a ela pertencesse presentemente.
Meu irmão está resolvido a ir para onde Vossa Reverência o encaminhar, pois tem grande desejo em seguir, eu também gostava que ele viesse a ser um dominicano, pois sei que é o melhor caminho que ele pode seguir apesar de ser um rapaz que muita falta nos faz para nos auxiliar; mas cada qual deve seguir somente o caminho que Deus lhe traçou.

Afinal o irmão Domingos também saiu da Ordem, pois encontrei-o em Vila Nova de Ourem dias depois de ter saído. Fiquei admirado quando ele me disse que tinha saído; sempre julguei que ele nunca se viesse embora. Um dia, quando eu estava ainda na Ordem, lá na cozinha, diz o irmão António de paródia para o irmão Domingos: (este vai para férias e nunca mais volta) e responde o irmão Domingos: (isso é o que ele tem mais certo) e por Deus querer assim aconteceu; mas mal julgaria o irmão Domingos ao soltar aquela frase, que lhe estava reservada a mesma sorte. Por isso ninguém deve dizer: (esta água não beberei).
Meu querido Padre queria dizer-lhe muito mais coisas, visto que são raríssimas as vezes que lhe escrevo, mas não é por me faltar que dizer, mas sim o tempo que é escasso, e Vossa Reverência estará já aborrecido de ler tanta gafonhada, pois sei o que me torno importuno na maneira de escrever, mas desde já lhe peço que me desculpe.
Quando alguma vez passar nesta estação é favor avisar-me pois terei imenso gosto em o ver, caso me seja possível. Pensei que tivesse a consolação de o ver há poucos dias; mas qual não foi a minha surpresa quando soube que Vossa Reverência não passaria aqui nesta época.
Agora para terminar só lhe peço mais um favor; que nunca se esqueça se mim nas suas orações para que Deus me encaminhe sempre pela via da salvação.
Rogo-lhe que apresente os meus cumprimentos a todos os superiores e igualmente ao Agostinho e Joaquim Bento. E Vossa Reverência receba um saudoso abraço deste seu grande amigo que a bênção lhe pede, e que jamais o esquecerá.
José Nunes Martins  

 

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Penso ser desnecessário afirmar que li com interesse e saboriei cada palavra da missiva de 1938 de José Nunes Martins ao Padre frei Tomás Maria Videira.
    Como Frei José Carlos constata José Nunes Martins mantém uma forte ligação ao seu antigo Superior e à Ordem o que nos ajuda a compreender o conteúdo da carta. Toca-nos profundamente o desabafo da dor que sente pela morte do Tio Padre e o detalhe com que o faz. Sente-se que o coração continua no Seminário pelo interesse que continua a manifestar pelos problemas com que o mesmo se debate e o interesse pelos que ficaram. O relato da cena na cozinha é muito interessante. É muito espontâneo, diria frontal.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha. Bem-haja. Que o Senhor o abençoe e o proteja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    ResponderEliminar