quarta-feira, 22 de maio de 2013

Carta de Bernardino Ferreira Cardoso para frei Tomás Videira

Após ter saído do Seminário de Mogofores a 10 de Fevereiro de 1935, o aluno Bernardino Ferreira Cardoso escreve algumas vezes durante este ano ao frei Tomás Maria Videira a expor-lhe a situação e necessidade de emprego em que se encontra.
A carta de 30 de Março de 1935 é interessantíssima pelos comentários políticos que encerra e pelo testemunho dos meandros do funcionamento social.

Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor
Começo por pedir desculpa a Vossa Reverência por não lhe ter escrito há mais tempo. Não é por falta de ocasião que eu não fiz o que faço hoje.
Começo por pedir a Vossa Reverência que me perdoe a negligência e perguntar-lhe como vai de saúde. Eu, graças a Deus, não é a falta de saúde que me apoquenta actualmente mas sim a falta de um emprego.
Quando saí do seminário vinha com tensão de me alistar voluntariamente no exército, mas isso para mim foi impossível. Para outros foi fácil por terem oficiais amigos e partidários deste governo. Eu, infelizmente dirigi-me a uma ferrenho e conhecido democrata, suspeito do governo, como ele me disse, o qual no tempo de Afonso Costa, poderia fazer em Portugal o que quisesse.
Disse-me ele que quando este governo for abaixo, o que disso nutria algumas esperanças, teria muita ocasião para atender aos meus pedidos. Esse tal era irmão dum genro de Afonso Costa e dirigi-me a ele pensando erradamente que me poderia valer. Ele fez o possível para atender ao meu pedido, mas nada conseguiu.
Por um voluntário tem que se responsabilizar um oficial por todos os seus actos políticos – sociais e morais, e quando ele, voluntário não proceder bem, o oficial que tomou sobre si a responsabilidade, está sujeito a ser expulso do exército sem nenhumas garantias.
O que se interessou por mim, era um oficial licenciado e tem muitos conhecidos nos quartéis do Porto mas esses tais amigos dele eram suspeitos do governo e portanto temiam a expulsão do exército no caso que o voluntário se portasse mal. Eram republicanos os amigos desse que se interessou por mim, e portanto não poderiam fazer nada com este governo, que “in nomine” é republicano mas que de facto é monárquico. Se me tivesse dirigido a outro que seguisse a política actual, teria conseguido alguma coisa.
O Salazar está tomando medidas severas para que não tenha lugar nos cargos públicos um que tenha ideias comunistas ou contrárias a este governo e poder propagá-las nos quartéis.   
Para ver se arranjo um emprego dirijo-me a Vossa Reverência para me fazer o grande favor de me passar um diploma dos exames e matérias que aí estudei, desde a minha entrada até à saída do seminário. Como completei aí a instrução primária, não me é fácil arranjar um emprego razoável sem isso.
Para isso lhe envio meia folha de papel selado que mando junto a esta carta. Desde já agradeço a Vossa Reverência este grande favor e espero que o fará o mais depressa possível. Começará por dizer que eu, Bernardino Ferreira Cardoso, nascido na freguesia de lobão, concelho de Vila da Feira, a 30 de Setembro de 1916, filho de Domingos Ferreira Cardoso e de Augusta Marques, frequentou o seminário desde 1 de Outubro de 1929 até 10 de Fevereiro de 1935 e que estudou neste espaço de tempo português, Latim, Francês, Aritmética, Geografia, História de Portugal e Universal, História Natural e Física, Literatura e Geometria.
Deve-se dizer que no primeiro ano 1929-1939 concluí aí a instrução primária e que por isso não tenho diplomas oficiais.
Talvez seja melhor dizer que saí daí por espontânea vontade.
Pedia a Vossa Reverência o favor de me dizer quanto  é pelo seu trabalho ou por qualquer outra despesa. Espero que esse diploma seja satisfatório, para ver se arranjo mais facilmente um emprego.
Quando estiver empregado tenciono escrever ao Senhor Raul, pedindo-lhe agora desculpa por não o fazer já.  
Todo o povo destes lados está todo irritado contra o governo, por este mandar cortar as videiras americanas. Realmente houve uma grande imprudência da parte do governo, pois qual é o lavrador que vai destruir uma das fontes principais de sua riqueza? Houve uma grande reclamação e está-se à espera do resultado. Se fora avante este decreto, este não passará sem haver mortes. O povo está resolvido a não deixar cortar as vides, e se tentarem cortá-las, ele levantar-se-á enérgica e violentamente.
Termino já, à falta de assunto, pedindo desculpa por o vir incomodar agora mais esta vez. Peço-lhe que o faça logo que puder, o que desde já agradeço reconhecido.
Fará o favor de apresentar os meus cumprimentos aos Senhores Padres, Senhor Raul e alunos.
Digne-se abençoar este de Vossa Reverência Muito Venerador e Obrigado.
Bernardino Ferreira Cardoso
Lobão
Vila da Feira
30-3-1935
 

 

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    A carta de Bernardino Ferreira Cardoso para Frei Tomás Maria Videira é um excelente testemunho do que se passava no tempo de Salazar política e sociológicamente falando. Muitos pagaram com a vida o desejo e o compromisso político para que todos os portugueses pudessem ter uma vida digna. Para outros com ou sem filiação partidária a factura foi mais leve ainda que permanecessem com a verticalidade dos sonhos de juventude não se deixando acomodar. O 25 de Abril de 1974 com consequências positivas e negativas foi motivo de esperança para aqueles que continuam a acreditar que é possível um Portugal mais fraterno, mais igual, mais solidário. Muita coisa mudou, i.e., o acesso ao ensino, à saúde. A liberdade não tem preço, mas tenho dúvidas se a utilização do avanço tecnológico, não contribue para a ilusão de uma falsa liberdade. Tornou-se um lugar comum afirmar que caminhamos para uma situação cada vez mais desigual, mais injusta, de indiferença ao sofrimento do nosso próximo, da parte daqueles que possuem em excesso, e o direito ao trabalho, indepentemente da recessão económica em que mergulhámos, consegue-se, através de estruturas mais sofisticadas que o Bernardino Ferreira Cardoso conheceu.
    Que a confiança e a esperança não nos abandonem é o que peço diariamente a Jesus, Frei José Carlos. Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe.
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha que nos recorda que afinal a história pode repetir-se mas de uma forma diferente. Bem-haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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