Após ter saído do
Seminário de Mogofores a 10 de Fevereiro de 1935, o aluno Bernardino Ferreira
Cardoso escreve algumas vezes durante este ano ao frei Tomás Maria Videira a
expor-lhe a situação e necessidade de emprego em que se encontra.
A carta de 30 de Março
de 1935 é interessantíssima pelos comentários políticos que encerra e pelo testemunho
dos meandros do funcionamento social.
Excelentíssimo e
Reverendíssimo Senhor
Começo por pedir
desculpa a Vossa Reverência por não lhe ter escrito há mais tempo. Não é por
falta de ocasião que eu não fiz o que faço hoje.
Começo por pedir a
Vossa Reverência que me perdoe a negligência e perguntar-lhe como vai de saúde.
Eu, graças a Deus, não é a falta de saúde que me apoquenta actualmente mas sim
a falta de um emprego.
Quando saí do seminário
vinha com tensão de me alistar voluntariamente no exército, mas isso para mim
foi impossível. Para outros foi fácil por terem oficiais amigos e partidários
deste governo. Eu, infelizmente dirigi-me a uma ferrenho e conhecido democrata,
suspeito do governo, como ele me disse, o qual no tempo de Afonso Costa,
poderia fazer em Portugal o que quisesse.
Disse-me ele que
quando este governo for abaixo, o que disso nutria algumas esperanças, teria
muita ocasião para atender aos meus pedidos. Esse tal era irmão dum genro de
Afonso Costa e dirigi-me a ele pensando erradamente que me poderia valer. Ele fez
o possível para atender ao meu pedido, mas nada conseguiu.
Por um voluntário tem
que se responsabilizar um oficial por todos os seus actos políticos – sociais e
morais, e quando ele, voluntário não proceder bem, o oficial que tomou sobre si
a responsabilidade, está sujeito a ser expulso do exército sem nenhumas
garantias.
O que se interessou
por mim, era um oficial licenciado e tem muitos conhecidos nos quartéis do Porto
mas esses tais amigos dele eram suspeitos do governo e portanto temiam a
expulsão do exército no caso que o voluntário se portasse mal. Eram republicanos
os amigos desse que se interessou por mim, e portanto não poderiam fazer nada
com este governo, que “in nomine” é republicano mas que de facto é monárquico. Se
me tivesse dirigido a outro que seguisse a política actual, teria conseguido
alguma coisa.
O Salazar está tomando
medidas severas para que não tenha lugar nos cargos públicos um que tenha
ideias comunistas ou contrárias a este governo e poder propagá-las nos quartéis.
Para ver se arranjo um
emprego dirijo-me a Vossa Reverência para me fazer o grande favor de me passar
um diploma dos exames e matérias que aí estudei, desde a minha entrada até à
saída do seminário. Como completei aí a instrução primária, não me é fácil
arranjar um emprego razoável sem isso.
Para isso lhe envio
meia folha de papel selado que mando junto a esta carta. Desde já agradeço a
Vossa Reverência este grande favor e espero que o fará o mais depressa possível.
Começará por dizer que eu, Bernardino Ferreira Cardoso, nascido na freguesia de
lobão, concelho de Vila da Feira, a 30 de Setembro de 1916, filho de Domingos
Ferreira Cardoso e de Augusta Marques, frequentou o seminário desde 1 de
Outubro de 1929 até 10 de Fevereiro de 1935 e que estudou neste espaço de tempo
português, Latim, Francês, Aritmética, Geografia, História de Portugal e Universal,
História Natural e Física, Literatura e Geometria.
Deve-se dizer que no
primeiro ano 1929-1939 concluí aí a instrução primária e que por isso não tenho
diplomas oficiais.
Talvez seja melhor
dizer que saí daí por espontânea vontade.
Pedia a Vossa
Reverência o favor de me dizer quanto é pelo seu trabalho ou por qualquer
outra despesa. Espero que esse diploma seja satisfatório, para ver se arranjo
mais facilmente um emprego.
Quando estiver
empregado tenciono escrever ao Senhor Raul, pedindo-lhe agora desculpa por não
o fazer já.
Todo o povo destes
lados está todo irritado contra o governo, por este mandar cortar as videiras
americanas. Realmente houve uma grande imprudência da parte do governo, pois
qual é o lavrador que vai destruir uma das fontes principais de sua riqueza? Houve
uma grande reclamação e está-se à espera do resultado. Se fora avante este
decreto, este não passará sem haver mortes. O povo está resolvido a não deixar
cortar as vides, e se tentarem cortá-las, ele levantar-se-á enérgica e
violentamente.
Termino já, à falta de
assunto, pedindo desculpa por o vir incomodar agora mais esta vez. Peço-lhe que
o faça logo que puder, o que desde já agradeço reconhecido.
Fará o favor de
apresentar os meus cumprimentos aos Senhores Padres, Senhor Raul e alunos.
Digne-se abençoar este
de Vossa Reverência Muito Venerador e Obrigado.
Bernardino Ferreira
Cardoso
Lobão
Vila da Feira
30-3-1935
Frei José Carlos,
ResponderEliminarA carta de Bernardino Ferreira Cardoso para Frei Tomás Maria Videira é um excelente testemunho do que se passava no tempo de Salazar política e sociológicamente falando. Muitos pagaram com a vida o desejo e o compromisso político para que todos os portugueses pudessem ter uma vida digna. Para outros com ou sem filiação partidária a factura foi mais leve ainda que permanecessem com a verticalidade dos sonhos de juventude não se deixando acomodar. O 25 de Abril de 1974 com consequências positivas e negativas foi motivo de esperança para aqueles que continuam a acreditar que é possível um Portugal mais fraterno, mais igual, mais solidário. Muita coisa mudou, i.e., o acesso ao ensino, à saúde. A liberdade não tem preço, mas tenho dúvidas se a utilização do avanço tecnológico, não contribue para a ilusão de uma falsa liberdade. Tornou-se um lugar comum afirmar que caminhamos para uma situação cada vez mais desigual, mais injusta, de indiferença ao sofrimento do nosso próximo, da parte daqueles que possuem em excesso, e o direito ao trabalho, indepentemente da recessão económica em que mergulhámos, consegue-se, através de estruturas mais sofisticadas que o Bernardino Ferreira Cardoso conheceu.
Que a confiança e a esperança não nos abandonem é o que peço diariamente a Jesus, Frei José Carlos. Que o Senhor o ilumine, o guarde e o abençoe.
Grata, Frei José Carlos, pela partilha que nos recorda que afinal a história pode repetir-se mas de uma forma diferente. Bem-haja.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva