Ao celebrarmos a Memória de São Gonçalo de Amarante trazemos mais um excerto da notícia que frei Manuel de Lima compôs para o “Agiológio Dominico”, publicado em Lisboa em 1709.
Uma vez mais esta história fundamenta um atributo iconográfico da representação deste Santo Dominicano, a ponte na mão ou junto aos pés com que frequentemente é representado.
Vestido o nosso Santo com o hábito Dominico, avivou com os nevados candores do hábito, as chamas do seu Apostólico zelo.
Feita a profissão, foi mandado pregar aos mesmos povos; porém com muito diferente colheita da sua doutrina: porque aos antigos conceitos, se juntaram desusados prodígios. Devia ser a razão: que antes pregava por impulso da própria resolução, agora mandado pela obediência; e esta virtude veste de novas eficácias todas as acções.
Continuava São Gonçalo as sua pregações; as mais delas junto da sua antiga ermida. E vendo que grande parte dos ouvintes viviam da outra banda do rio Tâmega; e que muitos, quando vinham buscar o pasto espiritual, ou se viam impedidos das caudalosas correntes do rio, ou chegavam a perecer, intentando-o vadear, abrasado em incêndios de caridade, condoendo-se da perdição, ou impossibilidade daquela gente, determinou fazer lançar uma ponte ao rio, para sem perigo se poder comunicar todo o povo.
A primeira designação desta obra, sobressaltou toda a comarca; porque suposto todos o amavam, e veneravam muito, todos entendiam que semelhante empresa era impossível aos maiores cabedais, quanto mais a um pobre frade, sem outro tesouro, que o Breviário. Confirmava-os nesta consideração a aspereza, e penhascoso do sítio, a penúria de todos os circunvizinhos, e por ela, a falta de trabalhadores. Mas o Santo, que com viva fé, penetrava os tesouros da Divina Omnipotência, quanto mais via julgar por temeridade o pensamento, tanto maiores valentias dava à resolução. E comprovou-o o céu, aparecendo-lhe um Anjo, o qual fazendo-lhe deixar o sítio mais fácil, lhe designou o mais alcantilado, e ao parecer de todos, mais impossível.
Deu-se princípio à obra, e logo começaram a manifestar-se os poderes divinos: não havendo pessoa nos contornos, que não acudisse, e quisesse cooperar para o seu desempenho; os pobres, com o serviço corporal; os ricos, com os criados; e todos os mais, com esmolas e provimento para os oficiais; finalmente não há naquela obra, pedra, que não seja preciosa; porque não há pedra que não custasse uma maravilha.
Referiremos algumas delas. Estava cortado um penedo de desmedida grandeza, que se julgava conducente para parte do alicerce; chamaram-se todos os trabalhadores, para o moverem, e lançarem ao rio: mas reforçados estes, com a gente mais robusta, nem um só abalo puderam dar a tanta máquina. Viu o Santo, o que passava, chega-se à pedra com uma semblante alegre, arrima-lhe o ombro, dizendo aos desmaiados trabalhadores: “Quanto para esta, um só velho basta”; e como se fora uma pouca de lã, a foi rodando até o lugar, em que havia de servir: deixando os circunstantes tão admirados do caso, como alentados para o futuro.
Também pode fazer companhia a esta maravilha a incansável diligência, com que o Santo tomava sobre seus ombros, desmedidos pesos de cal, e areia, que parecia não só ser arquitecto empenhado, mas o único trabalhador. (1)
(1) LIMA, Frei Manuel de – Agiológio Dominico, Tomo I. Lisboa, Oficina de António Pedrozo Galram, 1709, 91.
Ilustração: São Gonçalo de Amarante, fachada da igreja do Convento de San Esteban de Salamanca.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarLi com interesse e alegria o excerto da notícia que Frei Manuel de Lima compôs sobre a fundamentação do atributo iconográfico da representação de São Gonçalo de Amarante. Este texto é um excelente exemplo e estímulo para todos nós. Que o Senhor nos conduza a estabelecer verdadeiras pontes entre as pessoas, para fraternalmente, participarmos, todos os dias, na construção de um mundo mais justo e solidário.
Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha. Bem-haja.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva
P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP
da coragem
Deus ensina à nossa vida que não há coragem inútil/que os lugares do impossível se deslocam/
quando a confiança toca o chão das coisas/e não é crença ornamental, alegoria//
liberta a nossa vida do discurso da resignação/que é o fatalismo,/
do derrotismo, que é a filosofia espontânea dos proletários//
......
dá ao nosso corpo a graça das viagens sem bagagens,/sem outro futuro que a coragem,/
sem outro combate que a justiça e o direito à diferença//
arma os nossos olhos da paciência ardente/e os nossos braços da ternura real,/
para acolhermos a aurora do Teu dia/no cruzamento do que em nós se repete e se interrompe,/
se desloca e se excede,/e descubramos o esplendor da tua face/de mãos dadas com quantos,/
de todos os horizontes te procuram/e te proclamam
santo, justo e imortal
(In, “O nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)