domingo, 11 de março de 2012

Homilia do III Domingo da Quaresma

A leitura do Evangelho de São João apresenta-nos um acontecimento extraordinário da vida de Jesus, a expulsão dos vendedores do templo, e como em quase todos os acontecimentos da vida de Jesus narrados por São João estamos perante um jogo de equívocos, um acontecimento e umas palavras cuja verdade e alcance estão muito para além do que é percebido pelos intervenientes na acção.
Este equivoco pode mesmo atingir-nos a nós, na medida em que nos podemos enganar relativamente à localização deste acontecimento, pois se os Evangelhos Sinópticos narram este acto de Jesus próximo à sua paixão, é um dos motivos para a sua prisão, o Evangelho de São João narra-o no início da vida pública de Jesus, imediatamente a seguir às bodas de Cana, no segundo capítulo.
Há assim uma relação intrínseca entre o que se passa em Cana da Galileia e este acontecimento violento no templo de Jerusalém, relação que se insinua no vinho novo que sai das talhas da purificação e na expulsão dos vendedores. Num e noutro acontecimento joga-se a nova relação com Deus, ilumina-se a idolatria possível na relação com Deus, que ainda que proibida pela lei de Moisés, como vemos no Livro do Êxodo, acontecia de facto nos rituais do culto judaico.
Assim, quando Jesus expulsa os vendedores do templo e é questionado sobre a autoridade para o poder fazer, ele não tinha nenhuma função no templo e por isso lhe é pedido um sinal profético que justificasse a acção que estava a realizar, a resposta não podia ser outra senão a da destruição do templo.
Erroneamente os seus interlocutores pensam que ele está a falar do templo de pedra, do templo erguido por Salomão e que de facto Herodes tinha levado quarenta e seis anos a restaurar e embelezar para satisfação e subjugação do povo. Jesus, contudo, estava a falar do seu corpo, do seu corpo ressuscitado, que é a chave deste acontecimento e de toda a violência que transparece na expulsão do templo.
O corpo de Jesus ressuscitado é o verdadeiro e único templo, um templo construído por Deus, consagrado por Deus com o sangue do sacrifício da cruz, dedicado a todos os homens no Espírito do ressuscitado, um templo no qual o comércio não tem lugar porque nele tudo é dom, tudo é gratuidade, tudo é liberdade e amor autêntico. Um templo em que a idolatria não é possível uma vez que não há negócio, não há troca ou permutas, mas apenas oferta e acolhimento, disponibilidade de entrega e aceitação.
Um templo que garante a todos os homens o acesso verdadeiro a Deus, na medida da partilha da glória do Pai por parte do Filho do Homem, da participação da humanidade na encarnação do Filho de Deus, e na medida da relação pessoal e única que se estabelece com Jesus Cristo ressuscitado.
Por isso São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios diz que enquanto os judeus pedem milagres, ou seja acções extraordinárias da parte de Deus, e os gregos procuram a sabedoria, o poder divino nas mãos da humanidade, os cristãos anunciam Jesus crucificado, o verdadeiro poder e a verdadeira sabedoria, a via totalmente pura de acesso ao divino, o templo perfeito.
Também por esta razão, em cada celebração da Eucaristia a doxologia com que se termina a Oração Eucarística diz “por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós Deus Pai todo poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”. Todo culto verdadeiro, toda a honra e toda a glória devidas a Deus acontecem por Jesus Cristo, com Jesus Cristo e em Jesus Cristo. Ele é o verdadeiro sacrifício, o dom total, o altar sagrado e o templo puro para a relação perfeita com Deus.
Neste sentido, e na medida do nosso desejo e decisão de vivermos este culto de uma forma perfeita, em intima relação com Jesus Cristo, necessitamos ainda de ir expulsando alguns vendedores e algumas bancas de comércio que permanecem em nós, algumas possibilidades de comércio que continuamos a alimentar.
Necessitamos ir purificando o nosso coração no sentido do acolhimento livre e sem contrapartidas do dom de Deus, necessitamos ir-nos libertando da instrumentalização que fazemos de Deus, como se fosse um kit de emergência, necessitamos colocar cobro à idolatria que alimentamos de um Deus feito à medida das nossas satisfações e dependências.
E tal como aconteceu no templo de Jerusalém é necessário por vezes usar a violência, a força para que aconteça a purificação; é necessário escutar a Palavra de Deus em oração, praticar a ascese de corpo e do espírito, exercer a caridade para com os irmãos e o perdão dos inimigos, para que nas velhas talhas destinadas à purificação aconteça o milagre do vinho novo das bodas de Cana.
São João termina o relato da expulsão dos vendedores do templo dizendo que Jesus não se fiava de muitos daqueles que acreditaram nele, pois conhecia-lhes os corações e o que havia em cada um deles. Conhecendo o nosso coração e o que nele habita desordenadamente, que o Senhor venha em nosso auxílio, e com a força da sua graça nos purifique e nos torne uma digna morada sua glória, o templo humano possível para a sua divindade.

Ilustração: “A purificação do Templo”, de El Greco, na igreja paroquial de San Ginés em Madrid.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O texto da Homilia do III Domingo da Quaresma que teceu e partilha é profundo e de grande importância para a nossa vida cristã, um convite a descobrir Jesus, como caminho de conversão, de reconciliação com Deus. No Evangelho, Jesus apresenta-se como o “Novo Templo” onde Deus Se revela aos homens como proposta para uma vida nova com Ele e com os nossos irmãos.
    Como nos recorda na Homilia ...” O corpo de Jesus ressuscitado é o verdadeiro e único templo, um templo construído por Deus, consagrado por Deus com o sangue do sacrifício da cruz, dedicado a todos os homens no Espírito do ressuscitado, um templo no qual o comércio não tem lugar porque nele tudo é dom, tudo é gratuidade, tudo é liberdade e amor autêntico. Um templo em que a idolatria não é possível uma vez que não há negócio, não há troca ou permutas, mas apenas oferta e acolhimento, disponibilidade de entrega e aceitação.
    Um templo que garante a todos os homens o acesso verdadeiro a Deus, na medida da partilha da glória do Pai por parte do Filho do Homem, da participação da humanidade na encarnação do Filho de Deus, e na medida da relação pessoal e única que se estabelece com Jesus Cristo ressuscitado.”(…)
    (...)Todo culto verdadeiro, toda a honra e toda a glória devidas a Deus acontecem por Jesus Cristo, com Jesus Cristo e em Jesus Cristo. Ele é o verdadeiro sacrifício, o dom total, o altar sagrado e o templo puro para a relação perfeita com Deus.”…
    Como nos salienta ...“na medida do nosso desejo e decisão de vivermos este culto de uma forma perfeita, em intima relação com Jesus Cristo”, (…) “necessitamos ir purificando o nosso coração no sentido do acolhimento livre e sem contrapartidas do dom de Deus, necessitamos ir-nos libertando da instrumentalização que fazemos de Deus, como se fosse um kit de emergência, necessitamos colocar cobro à idolatria que alimentamos de um Deus feito à medida das nossas satisfações e dependências”…
    E como Frei José Carlos reconhece o caminho proposto não é fácil, exige de nós um esforço de transformação, um compromisso que se revela no nosso quotidiano, nos nossos comportamentos, nas nossas atitudes.
    Façamos nossas as palavras de Frei José Carlos e peçamos ao Senhor que …”venha em nosso auxílio, e com a força da sua graça nos purifique e nos torne uma digna morada para sua glória, o templo humano possível para a sua divindade.”
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homilia, muito profunda e bela, que nos encoraja e conforta onde voltarei sempre que andar mais “distraída” para reflectir nas palavras partilhadas onde buscarei também a ajuda que preciso.
    Votos de uma boa semana.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe de novo o texto de uma oração.

    SEGUNDA-FEIRA
    AO SOL

    Sei que ainda é Inverno. E que talvez, em alguma parte, hoje choverá. Mesmo assim apetece-me rezar o título
    de um filme que vi, “segunda-feira ao sol”. Apetece-me, Senhor, começar esta semana não apenas com o peso
    das coisas que retomamos, com a nossa labuta de formigas no carreiro, com o esforço até hostil que o quo-
    tidiano reclama. Hoje, queria rezar, ainda que em pleno Inverno, para que não nos abandone nunca a paixão pela luz.
    Que dentro de nós existam todo o ano esplanadas silenciosas onde a amizade se reencontra, falas tecidas sem pressa,
    caminhos que nos conduzem às verdades simples da vida, disponibilidade para o gratuito, desejo de contemplação.

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