sábado, 24 de março de 2012

Nunca ninguém falou como esse homem! (Jo 7,46)

Apesar de todos os perigos que ameaçam a vida de Jesus, ele continua a ensinar no templo, continua a manifestar a Palavra de Deus, fazendo confiança na promessa do Pai de que ainda não tinha chegado a sua hora.
Certamente não tem ilusões sobre o futuro que o espera, mas também não deixa de ter confiança de que Deus, o Pai, está do seu lado e portanto o protege e o suporta na sua causa e missão.
A sua atitude e o seu ensinamento no templo provocam inevitavelmente comentários, questões sobre a autoridade para o fazer, uma vez que não sendo um mestre, alguém da orgânica do templo, não tinha direito a tal.
A ousadia de o fazer, e de alguma falta de resposta enérgica da parte dos chefes religiosos e políticos do templo, provocam também a discussão sobre a sua identidade e origem, pois não sendo da hierarquia religiosa, só a natureza messiânica possibilitava tal ousadia.
Surgem assim as questões sobre a sua procedência, sobre a sua origem, e a constatação de que alguém vindo da Galileia não podia ser o Messias, uma vez que as profecias e a Lei de Moisés, a tradição religiosa, apontava o Messias como da descendência de David e da terra de Belém.
Esta discussão inviabiliza o conhecimento e reconhecimento de que Jesus vem de Deus, que o Messias viria antes de mais de Deus, e era isso que se tornava necessário verificar, confirmar, pela mesma acção de Jesus, pelas suas palavras e gestos, pela sua atitude e vida.
A tentativa da descoberta da identidade messiânica de Jesus pela sua procedência geográfica ou genealógica apenas poderia conduzir a um beco sem saída, a um desconhecimento e desencontro.
É pela sua palavra, pela sua mensagem de amor e misericórdia, que Jesus se dá a conhecer como Messias e Filho de Deus, que se pode conhecer a sua origem e o seu fim, a missão a que está destinado, apesar de todos os obstáculos e imprevistos, e do não reconhecimento por parte daqueles a quem é enviado.
E para tal é necessário tempo, é necessário predispor-se a escutar o que ele diz, fazer essa pausa que permite a escuta e dar esse tempo necessário para que o outro fale.
Curiosamente e contra todas as expectativas, na passagem do Evangelho de São João em que os soldados são enviados ao templo para o prender, são estes mesmos soldados que realizam a tarefa da escuta. São eles que são capazes de o escutar na sua simplicidade e na sua liberdade, e a partir dessa escuta estabelecer uma relação com Jesus, ainda que inconsciente.
Enviados pelos chefes do templo e dos escribas, os soldados não colocam qualquer questão, não se encerram em debates teológicos sobre a origem ou identidade de Jesus, deixam isso para os outros, para os que se dedicam a tal, os seus chefes.
Os soldados apenas escutam, e numa circunstância perfeitamente normal, quotidiana, pois é o facto de esperarem que Jesus termine o seu ensinamento para o prenderem, de modo a não provocarem tumultos ou qualquer rebelião, que possibilita a escuta.
É verdade que o têm debaixo de olho, que não o podem perder de vista, e tal como eles também Jesus os tem debaixo de olho, mas o que provoca a alteração, o fracasso da missão para que tinham sido enviados é a palavra que escutam a Jesus.
Uma palavra que os seduz, como se confirma pela acusação de que vão ser alvo, uma palavra de paz que lhes entra no coração e permite que se estabeleça a comunhão, uma relação, traduzida na boca dos chefes como sedução.
Ao contrário dos chefes que os enviam, eles não estão cegos pela inveja ou pelo medo de perderem o seu estatuto, o seu poder ou o seu lugar, não há qualquer interesse e por isso podem ouvir a palavra de forma independente e perceber que nenhum homem falou como aquele, que não há ali nada de mal nem de mentira, qualquer oportunismo ou tentativa de exploração.
Tal como estes soldados também nós somos colocados perante a palavra de Jesus, uma palavra que nos chega pelas Escrituras Sagradas, mas também pela palavra dos irmãos que nos solicitam ajuda, que apelam à manifestação e ao exercício do mandamento do amor.
E assim como acontece o encontro dos soldados com a palavra de Jesus, também acontece na banalidade das nossas tarefas, das nossas funções profissionais, familiares ou sociais o encontro com essa mesma palavra; também aí Deus nos dirige a sua palavra, nos confronta com ela, e nos convida a deixarmo-nos seduzir, a reconhecermos que há de facto uma palavra que de nenhum outro modo foi proferida ou podia ter sido proferida, pois é palavra de amor, de alguém que nos ama ao ponto de se entregar por nós, em resgate das nossa faltas de amor.

Ilustração: “Nenhum soldado lhe deitou a mão”, de James Joseph Jacques Tissot, Brooklyn Museum.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    No texto da Meditação que elaborou e partilha connosco, podemos confirmar que as discussões e querelas acerca da identidade de Jesus, a autoridade para ensinar no templo, não representam a essência do problema para os chefes religiosos ou politicos, ou outros que sentem que a Palavra de Jesus pode pôr em causa o “establishment”. Como nos salienta no texto, …” É pela sua palavra, pela sua mensagem de amor e misericórdia, que Jesus se dá a conhecer como Messias e Filho de Deus, que se pode conhecer a sua origem e o seu fim, a missão a que está destinado, apesar de todos os obstáculos e imprevistos, e do não reconhecimento por parte daqueles a quem é enviado.
    E para tal é necessário tempo, é necessário predispor-se a escutar o que ele diz, fazer essa pausa que permite a escuta e dar esse tempo necessário para que o outro fale. (…)
    (…) ”Os soldados apenas escutam,(…) Uma palavra que os seduz, como se confirma pela acusação de que vão ser alvo, uma palavra de paz que lhes entra no coração e permite que se estabeleça a comunhão, uma relação, traduzida na boca dos chefes como sedução.
    Ao contrário dos chefes que os enviam, eles não estão cegos pela inveja ou pelo medo de perderem o seu estatuto, o seu poder ou o seu lugar, não há qualquer interesse e por isso podem ouvir a palavra de forma independente e perceber que nenhum homem falou como aquele, que não há ali nada de mal nem de mentira, qualquer oportunismo ou tentativa de exploração.”
    Bem-haja, Frei José Carlos, por nos exortar que assim …” como acontece o encontro dos soldados com a palavra de Jesus, também acontece na banalidade das nossas tarefas, das nossas funções profissionais, familiares ou sociais o encontro com essa mesma palavra; também aí Deus nos dirige a sua palavra, nos confronta com ela, e nos convida a deixarmo-nos seduzir, a reconhecermos que há de facto uma palavra que de nenhum outro modo foi proferida ou podia ter sido proferida, pois é palavra de amor, de alguém que nos ama ao ponto de se entregar por nós, em resgate das nossa faltas de amor.”
    Deus nada nos impõe mas convida-nos, oferece-nos. Tal como Jesus se revelou na Cruz, é no quotidiano que nos revelamos e cumprimos a nossa missão, na busca de Jesus, na escuta e na prática da Sua palavra, e na procura do nosso próximo, com os gestos mais simples, gratuitos ou os mais necessários, na coerência do que afirmamos ser.
    Grata, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas, pela reflexão que nos proporcionam, neste tempo quaresmal e sempre. Bem-haja por tudo. Que o Senhor o abençõe e proteja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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