domingo, 20 de janeiro de 2013

Homilia do II Domingo do Tempo Comum

Ao escutarmos a narração das bodas de Caná não podemos deixar de sorrir e de comentar que para um banquete de casamento a situação não era muito agradável. Teria faltado organização? Teriam sido imprevidentes face ao necessário e ao número elevado de convidados? É uma situação que no mínimo nos deixa bastante desconfiados sobre as razões do desastre.
Por outro lado, e tendo presente que no Evangelho de São João este é o primeiro acto público de Jesus, depois do chamamento dos apóstolos, podemos dizer que para começar não podia ter sido pior, que as circunstâncias não eram as mais favoráveis a um debutar social. Afinal o convidado vê-se envolvido num desastre de que não tem culpa nenhuma, e por isso a pergunta de Jesus a sua mãe, “mulher que temos nós com isso”.
Mas se no imediato e na materialidade Jesus não tem nada com o desastre, na sua dimensão simbólica, na dimensão reveladora do que ele significa realmente, Jesus já tem muito que ver, Jesus já tem um papel muito importante e uma grande responsabilidade.
Neste sentido encontramo-nos no desastre com um conjunto de elementos materiais, objectos do quotidiano, que fazem referência a realidades religiosas, a questões fundamentais do credo da fé judaica, que estão perdidas e sem sentido e portanto necessitam ser renovadas ou transformadas.
São João ao narrar a acção de Jesus, o envolvimento de Jesus no desastre, começa por salientar que havia ali seis talhas de água para a purificação que levavam duas a três medidas e que estavam vazias. Ao estarem vazias, apesar de cada uma delas poder levar cem litros de água, estamos perante o vazio do rito judaico, face à incapacidade dos procedimentos rituais para realizarem o que significavam. A purificação estava portanto ultrapassada, vazia de sentido.
Por outro lado, os seiscentos litros de água que as talhas podiam comportar fazem referência inevitável ao conjunto dos preceitos e mandamentos que compunham a lei judaica, e que, ainda que sendo muitos e belos, não proporcionavam a felicidade que se esperava, não satisfaziam o homem e a sua relação com Deus.
Assim, o desastre da falta de vinho neste banquete nupcial é a explicitação do desastre da aliança de Deus com o povo, uma aliança que tinha sido concebida e apresentada, como pudemos constatar na leitura do profeta Isaías, como uma boda nupcial. Deus tinha escolhido o povo de Israel como uma noiva, mas o sequestro da relação em preceitos invioláveis tinha conduzido ao desastre dessa mesma relação.  
É face a este desastre que Jesus é chamado a intervir; e se no primeiro momento não responde ao pedido de sua mãe, imediatamente toma a acção e age sobre os elementos, mostrando dessa forma que a sua resposta não se deve ao pedido circunstancial dos homens, mas à sua vontade primogénita e à sua missão redentora. Ele está ali para restaurar a aliança, para devolver à alegria das bodas nupciais com Deus o homem aflito e envergonhado pelas faltas cometidas.
Neste sentido, a acção de Jesus, o milagre que realiza, conduz não só a um vinho de alta qualidade mas a uma produção abundante. Da falta desastrosa anterior passamos a uma quantidade e a uma qualidade superiores, a uma resposta cuidada e qualificada que oferece satisfação aos convidados.
A imagem superlativa da qualidade e da quantidade do vinho novo coloca diante dos nossos olhos a superabundância do amor de Deus, da acção de Deus sobre a humanidade e cada um de nós. Uma superabundância que se reflecte nos dons do Espirito Santo de que fala São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios.
Há um só Espirito, e é o mesmo Espirito que se oferece a cada um; mas também a cada um se oferece de modo particular, com um dom próprio para que se possa realizar, para que possa levar a cabo a missão que lhe está destinada.
Tal pressuposto deveria levar-nos a olhar com outros olhos não só o nosso dom, o que o Espirito colocou em nós para a realização do bem comum, mas também para os dons dos nossos irmãos, dos homens e mulheres que vivem connosco. O Espirito proporciona uma complementaridade, um conjunto que se complementa e completa nos dons dos outros.
Deveríamos por isso estar muito atentos não só ao nosso egoísmo, ao nosso egocentrismo, como se nada funcionasse sem nós, mas também à nossa inveja, a esse reconhecimento negativo dos dons dos outros, que não leva a apreciá-los mas a desejá-los, a não deixar que eles se desenvolvam e realizem.
O vinho que Jesus ofereceu nas bodas de Caná é o vinho do Espirito, o vinho da nova Aliança, que nos é oferecido em abundância e em qualidade superiores. Deveríamos procurar apreciá-lo para que não se desperdiçasse e para que nos inebriasse de modo a que a nossa vida e a vida dos nossos irmãos e irmãs connosco fosse uma verdadeira festa, um banquete em que nos sentimos e sabemos todos membros do mesmo corpo, todos convidados à alegria comum da festa.
Que o Espirito Santo nos transforme para que possamos ter uma melhor qualidade de vida e de serviço, para que possamos ser o melhor que é oferecido a todos os convidados do banquete do Reino.
 
Ilustração: “Bodas de Caná”, de Bartolomé Esteban Murillo, The Barber Institute of Fine Arts, Inglaterra.   

 

2 comentários:

  1. Atenção à acção do Espírito, em nós e nos outros,à sua acção de complementariedade entre todos, é um desafio a que somos chamados e para o qual muitas vezes falta a coragem.Inter Pars

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  2. Frei José Carlos,

    Como nos afirma no texto da Homilia do II Domingo do Tempo Comum o relato das bodas de Caná é estranho e impregnado de símbolos. Como nos recorda “tendo presente o Evangelho de São João este é o primeiro acto público de Jesus, depois do chamamento dos apóstolos”, em que “Jesus deu início aos seus milagres e que os discípulos acreditaram n’Ele”.
    Permita-me que cite alguns excertos que me tocam particularmente.
    … “o desastre da falta de vinho neste banquete nupcial é a explicitação do desastre da aliança de Deus com o povo, uma aliança que tinha sido concebida e apresentada, como pudemos constatar na leitura do profeta Isaías, como uma boda nupcial. Deus tinha escolhido o povo de Israel como uma noiva, mas o sequestro da relação em preceitos invioláveis tinha conduzido ao desastre dessa mesma relação.(…)
    (...) A imagem superlativa da qualidade e da quantidade do vinho novo coloca diante dos nossos olhos a superabundância do amor de Deus, da acção de Deus sobre a humanidade e cada um de nós. Uma superabundância que se reflecte nos dons do Espirito Santo de que fala São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios. (…)
    (...) O vinho que Jesus ofereceu nas bodas de Caná é o vinho do Espirito, o vinho da nova Aliança, que nos é oferecido em abundância e em qualidade superiores. Deveríamos procurar apreciá-lo para que não se desperdiçasse e para que nos inebriasse de modo a que a nossa vida e a vida dos nossos irmãos e irmãs connosco fosse uma verdadeira festa, um banquete em que nos sentimos e sabemos todos membros do mesmo corpo, todos convidados à alegria comum da festa.”…
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha desta Homília, profunda, que nos salienta algumas das dimensões da religião que Jesus veio complementar, por exortar-nos …” a olhar com outros olhos não só o nosso dom, o que o Espirito colocou em nós para a realização do bem comum, mas também para os dons dos nossos irmãos, dos homens e mulheres que vivem connosco”.
    Que o Senhor o ilumine, o guarde e abençoe.
    Votos de uma boa semana, com alegria, confiança e esperança.
    Bom descanso.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe de novo o texto da oração que transcrevo:

    A VENTANIA
    DE DEUS

    Penso nos vários sentidos que a palavra Espírito tem no texto bíblico: sopro, hálito vital, vento ...
    E é isso que me apetece rezar esta manhã, Senhor. Sopra sobre o indeciso, venha o sussurro do Teu alento
    íntimo renovar o hesitante, a ventania de Deus nos mova. Parecemo-nos tanto a embarcações travadas,
    velas erguidas sem a energia de novas praias, de intactos e aventurosos cabos ... Os nossos barcos rodam apenas
    em redor de si próprios. Manda, Senhor, a pulsão do Espírito, o ânimo criador que incessantemente nos coloca ao
    encontro da novidade e da beleza do Teu Reino.

    (In, Um Deus Que Dança, Itinerários para a Oração, José Tolentino Mendonça, 2011)

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