As leituras do Livro
de Neemias e do Evangelho de São Lucas que acabámos de escutar oferecem-nos
relatos que se prendem antes de mais com a materialidade do livro e da sua
leitura.
No Livro de Neemias escutávamos
como foi encontrado um livro, da lei do povo de Israel, que se desconhecia ou
considerava perdido, e como a sua leitura foi um momento de profunda
manifestação e adoração, por parte do povo, da palavra que nele se encontrava e
escutava.
O Evangelho de São
Lucas narra-nos a leitura que Jesus fez do livro do profeta Isaías aquando da
primeira visita à sua terra de Nazaré e como Jesus assumiu para si a leitura
que realizava.
Contudo, antes deste
relato, a leitura que escutámos apresenta-nos o trabalho e os esforços do autor
do texto evangélico para recolher as mais fidedignas informações relativamente
à vida de Jesus, de modo a fortalecer a vida e a fé daquele para quem escreve, Teófilo.
Estamos assim, nestas três
circunstâncias perante o processo da materialidade de uma história, de uma
história que se redige e compõe, mas que ultrapassa a mera materialidade e
composição.
Não é um simples texto,
uma simples composição histórica ou legislativa, uma narração de
acontecimentos, uma biografia, mas é um texto que transmite vida, que é vida e
coloca os seus leitores face a um desafio de vida. O texto adquire assim uma
dimensão transcendental e transversal entre o narrado, o acontecimento da
história, e o leitor, aquele que se confronta a sua vida com o texto.
Neste sentido, aquilo
que Jesus faz na sinagoga de Nazaré não é nada de extraordinário, mas é uma vez
mais a realização da dinâmica da palavra divina plasmada num texto humano, da
palavra que nos transcende mas também nos engloba e assimila, que se faz vida
na leitura e na resposta à leitura.
Ao ler o texto de
Isaías, Jesus reconhece-se nas palavras do profeta, reconhece que lhe são
dirigidas e por isso não pode deixar de afirmar que naquele dia se cumpriam as
mesmas palavras do profeta. Ele que tinha já experimentado a eleição do Pai
aquando do baptismo no rio Jordão, que tinha já experimentado a força e o poder
da sua acção salvadora junto dos homens, quando curava e expulsava os demónios,
reconhece a promessa como actualidade, como actuando em si e por si.
É também este princípio,
esta dinâmica que leva o Evangelista Lucas a procurar para Teófilo todas as
informações acerca de Jesus, as informações mais fidedignas junto das
testemunhas mais credenciadas. E este objectivo não é por razões científicas ou
históricas, por uma curiosidade coscuvilheira, mas para que Teófilo possa viver
a sua fé em Jesus Cristo de uma forma mais autêntica, mais fundamentada, vida
vivida.
Afinal, o objectivo do
Evangelho não é contar uma história, fazer uma recolha historiográfica, mas
apontar acontecimentos e ensinamentos que conduzam à vida de Jesus, uma vida
que nos alcança, que tem actualidade em nós e portanto deve transformar a nossa
vida.
De alguma forma, somos
convidados pelo Evangelho a proferir as mesmas palavras de Jesus, “hoje
cumpriu-se esta passagem da Escritura em mim”, hoje estas palavras são vida
para mim, transformam a minha vida, fazem-me tomar consciência da sua transcendência
e eternidade.
E porque face a esta
relação com a palavra podemos cair na sua idolatria, na leitura fundamentalista
literalista, somos convidados, à luz da mesma palavra que escutámos na leitura
do Livro de Neemias, a manter uma relação de equilíbrio entre a veneração do
texto e a vida que não deixa de ser perfeitamente normal e quotidiana.
Assim, quando a
leitura do livro da lei terminou e todos o puderam venerar e adorar, o povo foi
convidado a regressar a suas casas e a comer e beber e a partilhar com aqueles
que não tinham nada para comer ou beber. A leitura e a veneração da palavra do
texto necessitavam transformar-se em vida, enquadrar o quotidiano em novas
dimensões, tal como ainda hoje se torna necessário que aconteça.
E por isso nos
reunimos para celebrar a Eucaristia e nela escutamos as várias leituras que a
liturgia da Palavra nos oferece, porque necessitamos venerar a Palavra de Deus,
que é vida, mas também porque necessitamos que ela se traduza nas nossas vidas,
se faça vida em cada um de nós.
São Paulo na Carta aos
Coríntios apresenta-nos como membros de um mesmo corpo, do corpo ressuscitado
de Jesus Cristo que é a Igreja, e apresenta a relação de interdependência que
existe entre todos. Face a esta relação podemos dizer que a palavra que
escutamos e veneramos, que o texto da Sagrada Escritura, é o alimento que individual
e comunitariamente nos conduz à realização da missão e nos mantém unidos num
mesmo corpo transcendental.
Procuremos pois
aproximar-nos da Palavra de Deus com a veneração e o respeito que lhe são
devidos e acolhendo-a no nosso coração e na nossa inteligência transformá-la em
vida na vida do nosso quotidiano.
Ilustração: “Os Quatro
Evangelistas”, de Jacob Jordaens, Museu do Louvre, Paris.
Realmente a palavra de Deus transforma-se em vida quando a acolhemos no nosso coração e na nossa inteligência e, humildemente, aceitamos ser instrumentos dessa Palavra. I.T
ResponderEliminarFrei José Carlos,,
ResponderEliminarA liturgia do III Domingo do Tempo e o texto da Homília que teceu são de grande profundidade. A importância da Sagrada Escritura, da Palavra de Deus, a sua tradução na nossa vida, o saber vivê-la na alegria, com equilíbrio, e o reconhecimento de que todos somos necessários, cada um na sua função, que a riqueza está na diversidade e a união faz a força nas nossas relações, a diferentes níveis. Permita-me que cite algumas das passagens do texto que me tocam.
...” aquilo que Jesus faz na sinagoga de Nazaré não é nada de extraordinário, mas é uma vez mais a realização da dinâmica da palavra divina plasmada num texto humano, da palavra que nos transcende mas também nos engloba e assimila, que se faz vida na leitura e na resposta à leitura.
Ao ler o texto de Isaías, Jesus reconhece-se nas palavras do profeta, reconhece que lhe são dirigidas e por isso não pode deixar de afirmar que naquele dia se cumpriam as mesmas palavras do profeta.(…)
(...)Afinal, o objectivo do Evangelho não é contar uma história, fazer uma recolha historiográfica, mas apontar acontecimentos e ensinamentos que conduzam à vida de Jesus, uma vida que nos alcança, que tem actualidade em nós e portanto deve transformar a nossa vida.(…)
(…)reunimos para celebrar a Eucaristia e nela escutamos as várias leituras que a liturgia da Palavra nos oferece, porque necessitamos venerar a Palavra de Deus, que é vida, mas também porque necessitamos que ela se traduza nas nossas vidas, se faça vida em cada um de nós.
São Paulo na Carta aos Coríntios apresenta-nos como membros de um mesmo corpo, do corpo ressuscitado de Jesus Cristo que é a Igreja, e apresenta a relação de interdependência que existe entre todos.”…
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda, ilustrada com beleza, pela importância que representa na reflexão sobre o nosso quotidiano, pela exortação que nos deixa …” Procuremos pois aproximar-nos da Palavra de Deus com a veneração e o respeito que lhe são devidos e acolhendo-a no nosso coração e na nossa inteligência transformá-la em vida na vida do nosso quotidiano.”
Que o Senhor o ilumine, o guarde e abençoe.
Votos de uma boa semana.
Bom descanso.
Um abraço fraterno,
Maria José Silva