quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

E estes por acaso não são homens?

E estes por acaso não são homens?
Faz hoje, dia 21 de Dezembro, quinhentos anos que esta questão foi colocada num sermão na ilha de La Espanhola por frei António de Montesinos. Era o quarto domingo do Advento de 1511 e o frade vestido de hábito branco e capa negra de São Domingos comentava o evangelho do profeta João Baptista, o Precursor do Messias.
Uma semana depois, a 28 de Dezembro os temas abordados pelo primeiro sermão, e que tanto escândalo tinham provocado, eram de novo retomados num tom mais veemente e numa frontalidade sem par.
Podemos dizer que foram sermões que mudaram a história da humanidade, há um tempo e uma concepção anterior e um tempo e uma concepção posterior, há uma dignidade do homem antes e outra depois, não há direito dos indígenas antes e passa a lutar-se por isso depois.
Conta-nos frei Bartolomeu de las Casas, uma das testemunhas do acontecimento que, “suplicando e encomendando-se muito a Deus com continuas orações, jejuns e vigílias, pediam a Deus que os iluminasse para não errar em coisa que tanto ia, e que se apresentava como novidade e escândalo, como era despertar pessoas que em seu tão profundo e abismal sonho tão insensivelmente dormiam. E finalmente, depois de repetidas vezes terem reunido o conselho, deliberaram pregar nos púlpitos publicamente e declarar o estado em que os pecadores se encontravam ao terem aquelas gentes oprimidas”.
Depois de vários dias de oração comum, vigílias e jejuns chegou o tão esperado domingo do Advento em que frei António de Montesinos, por obrigação de preceito formal dado pela comunidade, subiu ao púlpito com o sermão por todos preparado.
“Chegado o domingo e a hora de pregar, subiu ao púlpito o dito padre frei António de Montesinos, e tomou por tema e fundamento do seu sermão, que já levava escrito e assinado pelos demais: ego vox clamantis in deserto. (Isaías 40,3)
Feita a introdução e dito algo relativamente à matéria do advento, começou a questionar, dizendo: eu sou a voz de Cristo no deserto desta ilha, dizei-me, pois, estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais em tamanha profundidade, dormidos num sono tão letárgico?
Tende por certo que, no estado em que vos encontrais, não vos podeis salvar mais que os mouros ou os turcos que não sabem nem querem saber da fé em Jesus Cristo!”
O burburinho no auditório foi mais forte que o rugido do mar e às mesas de almoço daquele domingo de Advento não houve lugar para outras conversas. Pouco depois todos se reuniam em casa do almirante Diego Cólon e organizava-se a manifestação de protesto que se plantou diante da porta do convento.
Diego Cólon, primeiro responsável pela ordem e pelo cumprimento das leis do reino de Castela entravou conversações com o prior do pobre convento, frei Pedro de Córdova, para que frei António de Montesinos se retractasse do que tinha dito no sermão, pois não podia comparar senhores de Castela, baptizados e velhos cristãos, a mouros e turcos infiéis.
A conversação e intimidação não tiveram os resultados esperados, pois frei Pedro de Córdova esclarece D. Diego que o pregado por frei António de Montesinos “tinha sido do parecer, da vontade e consentimento seu, enquanto prior, e de todos os da casa, e depois de muito bem visto e conferido entre eles, e porque com muito conselho e madura deliberação tinham determinado que se pregasse como verdade evangélica e como necessária à salvação de todos os espanhóis e índios daquelas terras”.
Por fim, e depois de muita conversa, D. Diego de Cólon consegue um meio acordo, a promessa de que no domingo seguinte, 28 de Dezembro, frei António de Montesinos subirá ao mesmo púlpito, não para proferir uma retractação do dito mas para dar uma explicação satisfatória pata todos.
No domingo seguinte, e uma vez mais depois de uma semana de oração, vigílias, e jejum, para não dizer fome, porque os colonos não partilharam com eles nada das festas do Natal, frei António subiu ao púlpito e iniciou o seu sermão como era habitual por uma citação bíblica, “repetam scientiam meam a principio, et sermones meos sine mendacio esse probabo” (Job 36,3-4).
Segundo conta frei Bartolomeu de Las Casas traduziu desta forma frei António a citação latina: “tornarei a referir desde o seu princípio a minha ciência e verdade que no domingos passado vos preguei, e aquelas minhas palavras que tanto vos amargaram mostrarei como são verdadeiras”.
O sermão daquele domingo 28, depois do Natal, não foi assim nenhuma retractação, nenhum retrocesso, mas uma reafirmação e corroboração de tudo o dito no domingo anterior, o que provocou imediatamente, e já sem qualquer perspectiva de diálogo, a ruptura entre os frades de São Domingos, D. Diego de Cólon e os castelhanos instalados na ilha.
O governador escreveu imediatamente à Corte, acusando os dominicanos de semear a discórdia e tentar afundar a tarefa colonizadora, “como tinham escandalizado o mundo semeando uma doutrina nova, condenando todos ao inferno, porque tinham os índios e se serviam deles nas minas e em outros trabalhos, contra o que sua Alteza tinha ordenado, e que não era outra coisa a sua pregação senão tirar-lhes o senhorio e as rendas que tinham naquelas partes”.
Foi o fim de um tempo de inconsciência, ainda que não da violência cometida sobre os índios. Foi uma experiencia de coerência à graça da pregação, uma prova de uma lealdade sem limites à sua vocação, pois são mendicantes, uma lealdade aos outros, pois é a sua salvação que está em causa, e uma lealdade à não violência porque a sua sensibilidade não podia deixar de ser tocada por tanta injustiça e abusos, que não eram caminho para a paz.
A pregação destes frades está dirigida antes de mais à idolatria do poder e à necessidade de salvação de todas as almas, e por isso no sermão não houve indígenas nem europeus, mas apenas homens e filhos de Deus que exploravam e eram explorados. Portanto uns e outros necessitavam evangelização, necessitavam de uma transformação à luz da Palavra de Deus e do mandamento do amor.
Passados quinhentos anos orgulhamo-nos destes irmãos, da sua ousadia e fidelidade, e pedimos junto de Deus a sua intercessão para nos dias que nos toca viver assumirmos a mesma coerência e fidelidade, podermos ser também um grito profético de libertação.

Ilustrações:
Frei António de Montesinos, estátua em pedra e bronze do escultor mexicano António Castellanos Basich, oferecida pelo México à cidade de Santo Domingo, na Républica Dominicana.
Frei Bartolomeu de Las Casas, Retrato enquanto bispo.
Ameríndios armazenando milho. Ilustração do Códice Florentino, do século XVI.

2 comentários:

  1. Frei José Carlos,

    Muito grata, por ter partilhado connosco o Sermão de Frei António de Montesinos.Que beleza de Meditação tão profunda e esclarecedora que nos ajuda a reflectir melhor.Obrigada,Frei José Carlos,por este texto tão bem ilustrado,que muito gostei.Bem-haja,por toda esta informação tão rica de sentido e que nos ajudam muito e dão força e coragem na nossa vida.Boa noite.
    Um abraço fraterno.
    AD

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  2. Frei José Carlos,

    Os sermões proferidos por Frei António de Montesinos, no quarto domingo de Advento, há 500 anos, 21 de Dezembro, e posteriormente no dia 28 de Dezembro, na ilha de La Espanhola, como nos diz ...” foram sermões que mudaram a história da humanidade, há um tempo e uma concepção anterior e um tempo e uma concepção posterior, há uma dignidade do homem antes e outra depois, não há direito dos indígenas antes e passa a lutar-se por isso depois.” …
    E, como nos salienta, …” A pregação destes frades está dirigida antes de mais à idolatria do poder e à necessidade de salvação de todas as almas, e por isso no sermão não houve indígenas nem europeus, mas apenas homens e filhos de Deus que exploravam e eram explorados. Portanto uns e outros necessitavam evangelização, necessitavam de uma transformação à luz da Palavra de Deus e do mandamento do amor”. …
    Mas os dominicanos ao assinalaram de forma tão significativa, na actualidade , esta vivência que foi um acto de coerência e de coragem, leva-nos a reflectir sobre o que falta ao ser humano no seu processo de transformação, quando através da comunicação social ou da escuta de experiências pessoais, tomamos conhecimento de formas menos espectaculares, em certas situações, de novas formas de exploração graves, e outras exercidas de forma mais sofisticada, hoje, aqui e agora.
    Como nos salienta …”Passados quinhentos anos orgulhamo-nos destes irmãos, da sua ousadia e fidelidade, e pedimos junto de Deus a sua intercessão para nos dias que nos toca viver assumirmos a mesma coerência e fidelidade, podermos ser também um grito profético de libertação”.
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha deste acontecimento, pela forma como o trabalhou e ilustrou. Bem-haja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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