quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Que fostes ver ao deserto? (Lc 7,24)

As dunas flutuantes de areia, os maciços de rochas nuas e agrestes, a vastidão de um espaço onde o sol desliza lentamente, o silêncio sem perturbação, marcam a nossa imagem do deserto. Afinal um espaço em que nos podemos perder pela falta de pontos de referência.
Para os ouvintes de Jesus, aos quais pergunta o que foram ver, o deserto é ainda mais que esta imagem, é uma experiência pessoal e histórica, pois não só o povo tinha feito a experiência de peregrinar pelo deserto, encontrando-se aí com Deus, como também alguns deles tinham ido além do Jordão para conhecer João e escutar a sua pregação.
Confrontando os ouvintes com a necessidade de coerência face a esse peregrinar ao deserto, Jesus coloca diante deles algumas imagens impossíveis no deserto. Assim, a ida ao deserto não tinha sido motivada por uma pessoa que vivia no luxo, que se vestia e alimentava ricamente, porque as pessoas que vivem dessa forma devem ser procuradas nos palácios e não nos desertos.
Também não foram ao deserto para ver uma cana agitada pelo vento, porque naturalmente as canas crescem nas margens dos rios, nos espaços húmidos e portanto não devem ser procuradas no deserto. Para além de nada significar uma cana agitada pelo vento para além desse mesmo vento que passa.
A visita a João no deserto representa assim a possibilidade de um encontro e de uma transformação, que são necessários assumir para que tal ida ou visita não se transforme numa condenação, num equívoco, como aconteceu com os fariseus e os doutores da lei que foram ver João Baptista mas não compreenderam ou não quiseram compreender o que ele significava.
Procurar o deserto, embrenhar-se no deserto, exige um encontro com uma fonte para que não se morra se sede, exige afinal encontrar essa cana que se agita ao vento, mas nos indica a presença do manancial escondido. É uma simples cana, frágil, tão fácil de se quebrar, que nos revela a presença da fonte e da água que nos sacia.
Também nos nossos desertos, nessa busca pelas vastidões da experiência de Deus, são os pequenos sinais, as pobres frágeis canas que nos assinalam a presença da fonte. O Livro da Palavra, o Pão consagrado, um rito litúrgico, um momento de silêncio ao fim do dia, um gesto de ternura, uma palavra de coragem. E a fonte pode estar mesmo ali à mão.
Visitar o deserto, entrar nele, exige igualmente o despojamento, a libertação desses luxos palacianos, as ricas sedes e brocados com que tantas vezes nos mascaramos para não nos revelarmos na nossa fragilidade e infidelidade. Tal como Jacob necessitamos não levar nada, ir nus, para que a nossa luta possa ser uma luta de corpo a corpo, sem véus que nos escondam a face do anjo ou capas que permitam o apego do inimigo.
Nesta preparação para a vinda do Senhor, no Natal e em cada dia da nossa vinda, que o medo não nos impeça de entrar no deserto e procurar a fonte que nos sacia, despojados de tudo o que nos possa privar do encontro corpo a corpo com o nosso Salvador.

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Ao recordar-nos a interrogação de Jesus à multidão “Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento?, mencionada neste excerto do Evangelho segundo S.Lucas (Lc 7,24), dirigindo-se a cada um de nós, afirma-nos que ...” Procurar o deserto, embrenhar-se no deserto, exige um encontro com uma fonte para que não se morra de sede, exige afinal encontrar essa cana que se agita ao vento, mas nos indica a presença do manancial escondido. É uma simples cana, frágil, tão fácil de se quebrar, que nos revela a presença da fonte e da água que nos sacia.”
    Mas vai mais longe, assinalando-nos que …” Também nos nossos desertos, nessa busca pelas vastidões da experiência de Deus, são os pequenos sinais, as pobres frágeis canas que nos assinalam a presença da fonte. O Livro da Palavra, o Pão consagrado, um rito litúrgico, um momento de silêncio ao fim do dia, um gesto de ternura, uma palavra de coragem. E a fonte pode estar mesmo ali à mão.” Afinal ser capaz de peregrinar, livres de disfarces, de falsas aparências, de máscaras, revelando a esssência do nosso ser, como somos, nas nossas fraquezas, com as nossas zonas cinzentas, sem receios para esse encontro com o Senhor.
    Façamos nossas as palavras do Frei José Carlos e, …”nesta preparação para a vinda do Senhor, no Natal e em cada dia da nossa vida, que o medo não nos impeça de entrar no deserto e procurar a fonte que nos sacia, despojados de tudo o que nos possa privar do encontro corpo a corpo com o nosso Salvador.”
    Obrigada, Frei José Carlos, pelas palavras partilhadas desta profunda Meditação, pela coragem, pelo incentivo que nos transmite. Que o Senhor o abençoe e proteja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP

    a vida é mais do que a vida

    a vida é mais do que a vida/cinzenta, crua, vingativa/ a vida é mais do que a vida/
    se testemunha da Fonte de onde corre/e do júbilo de existir//

    a vida fala do que a transporta/da fé a que todo o Amor se arrima/a vida fala do que a transmuda/
    e do devir que não nos prende à prisão do tempo//

    por isso nos reunimos/navegando nos olhos uns dos outros/para olhar através da janela de cada casa/
    e cada rosto/
    o Aberto, a paz-desejo//

    cure-nos a água da tua misericórdia/da cegueira do suficiente e do proselitismo/
    rompa o teu Sopro as cortinas/da casa murada e defendida/ do medo que nos tolhe e até a alegria rouba//

    e que a Palavra nos aproxime/daquilo que do bem e da beleza nos afasta

    (In, “O nome e a Forma”, Pedra Angular, 2009)

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