sábado, 3 de dezembro de 2011

Homenagem ao Frei José Augusto Mourão no Convento dos Cardais


A convite da Irmã Maria Augusta reunimo-nos na igreja do Convento dos Cardais para homenagear o frei José Augusto Mourão, partilhar as nossas experiências de vida com ele. Viemos de vários pontos do país e de Lisboa, de vários momentos do percurso de vida do frei José Augusto, e assim tanto se falou do professor, como do amigo, do frade como do poeta.
O ter que testemunhar o que foi a minha experiência com o frei José Augusto, enquanto religioso e companheiro do mesmo convento dominicano, obrigou-me a recorrer às memórias e a experimentar, pela verbalização dessas experiências, um luto que ainda não fui capaz de fazer. Faz-nos sempre falta o corpo, para a vida e para a morte, e a generosidade do frei José Augusto de doar o corpo à ciência subtraiu-nos esse corpo para o luto.
Pode-se abordar a experiência de vida com alguém por vários vectores, a partir de diversos elementos dessa mesma experiência e vida. No meu caso, como dominicano, irmão e companheiro do também dominicano frei José Augusto optei por fazer a abordagem a partir daquilo que na Ordem consideramos os pilares fundamentais, a oração, o estudo, a vida comum fraterna e a pregação.
Como homem de oração o frei José Augusto deixou-nos um conjunto de poesias oração, de anáforas para a celebração da Eucaristia, um conjunto de hinos e cânticos, que como escreveu o professor Tolentino Mendonça um dia serão oração comum nos lábios de muita gente, de muitos homens e mulheres que buscam a Deus.
Contudo, uma recordação que me fica do frei José Augusto, neste âmbito da oração, é a sua transparência no coro, onde num momento nos dizia que cantávamos as estrofes 1, 2 e 3 e logo depois cantava a 1, 4 e a 5. Improvisação? Gosto de nos provocar? Liberdade criativa? Ou simplesmente porque o seu coração naquele momento e no fluir das palavras e das notas da música pedia aquela nova disposição? Enquanto cantava frei José Augusto rezava, e rezava duas vezes como diz o rifão popular.
Ainda no espaço do coro, não posso deixar de recordar a sua insistência para que a oração fosse cantada, para que não perdêssemos esse gosto de tentar expressar a alegria de nos sentirmos amados por Deus. E para um desafinado e duro de ouvido como eu, esta insistência seria um exercício de paciência, porque algumas vezes estando só os dois no coro, e sabendo que desafinava, não desistia de cantar. Era para ele vital.
Ao tentar uma homenagem ao frei José Augusto não posso deixar de salientar a sua dimensão de investigação, de fundamento no pilar do estudo. Era o seu trabalho, mas era também a sua forma de se encontrar com os outros e ser fiel à vocação de pregador. Pregava nas pontes que estabelecia entre a teologia, a Palavra de Deus, e as novas tecnologias, as fronteiras do conhecimento assente igualmente na palavra.
Diz-se que estudar é uma forma de ascese e o frei José Augusto era neste aspecto um profundo asceta, um homem que mantinha uma disciplina de trabalho, que humildemente confesso me provocava um desejo enorme de o imitar, uma miserável inveja de querer ser parecido, capaz desse trabalho e dessa disciplina.
Neste aspecto dou graças a Deus por ter vivido neste luxo, com um irmão que muitas vezes nos deixava perplexos com o que andava a investigar e a trabalhar, que muitas vezes nos deixava espantados com o que dizia. Mas como sentimos falta desse espanto e dessa provocação.
Numa entrevista à Maria João Seixas em 2003 confessava que não gostava da ideia de viver sozinho. Podemos dizer que assim era, porque gostava de ter interlocutores, de ter à mesa sempre alguém com quem falar, a quem questionar. E por detrás dessa timidez que tanto nos intimidava e por vezes o deixava só, escondia-se um grande coração sempre atento aos outros. Era a palavra de apreço por uma refeição mais cuidada, por uma flor colocada na igreja, um pedido de ajuda omitido porque sabia que nos iria complicar a vida.
E tudo isto se reflectia inevitavelmente na pregação, na homilia, nos textos preparados, nas poesias, em cujas palavras tantas vezes nos perdemos por lhes ter dado um novo sentido ou uma nova relação. Era difícil compreendê-lo ao princípio mas quando se habituava o ouvido às suas palavras e ao seu tom de voz que deleite e que gozo. Estava tudo ali, o que ele era, o que pensava, o que ele tinha vivido, ao que ele aspirava, e por isso tantas vezes os nervos e numa ou noutra situação as lágrimas. A palavra habitava a carne que o constituía e o coloca em relação.
O pano caiu e a função terminou, o palco vazio traz-nos aos olhos as lágrimas da graça de ter partilhado a vida com ele, e as lágrimas da dor de já não o ter connosco. A sua memória é um apelo à liberdade, a um murro na mesa, a um grito contra o conformismo. Há outros céus, outras palavras, um horizonte que incessante nos busca.



1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    Leio, releio e volto a beber cada uma das palavras que teceu no texto de Homenagem ao Frei José Augusto Mourão e que connosco partilha. “Quem é lembrado não morre”... Esta é uma grande verdade e são os amigos, seguidores e apreciadores da obra deixada por Frei José Mourão que poderão fazê-lo. Para vós, dominicanos, e para muitos de nós, o Frei José Mourão continua vivo, de outra forma, através do exemplo, da palavra, da memória, da obra que nos deixou onde mergulhamos sempre que queremos.
    E como nos salienta (...) E tudo isto se reflectia inevitavelmente na pregação, na homilia, nos textos preparados, nas poesias, em cujas palavras tantas vezes nos perdemos por lhes ter dado um novo sentido ou uma nova relação. Era difícil compreendê-lo ao princípio mas quando se habituava o ouvido às suas palavras e ao seu tom de voz que deleite e que gozo. Estava tudo ali, o que ele era, o que pensava, o que ele tinha vivido, ao que ele aspirava, e por isso tantas vezes os nervos e numa ou noutra situação as lágrimas. A palavra habitava a carne que o constituía e o coloca em relação.(…)
    A sua memória é um apelo à liberdade, a um murro na mesa, a um grito contra o conformismo. Há outros céus, outras palavras, um horizonte que incessante nos busca.”
    Obrigada, Frei José Carlos, pela partilha da Homenagem ao irmão, ao dominicano, Frei José Mourão, que …”como dominicano, irmão e companheiro do também dominicano frei José Augusto optei por fazer a abordagem a partir daquilo que na Ordem consideramos os pilares fundamentais, a oração, o estudo, a vida comum fraterna e a pregação.”… Que testemunho revelador, fraterno, pessoal e simultaneamente objectivo que me toca.Bem-haja.
    Se me permite, um grande obrigada, à Irmã Maria Augusta do Convento dos Cardaes, pela persistência em partilhar e revelar o testemunho deixado pelo Frei José Mourão.
    Que S.Domingos interceda junto do Senhor por todos nós. Votos de um bom domingo.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva
    P.S. Permita-me, Frei José Carlos, que partilhe um poema de Frei José Augusto Mourão, OP

    esperança

    bendito sejas, Pai, pelo teu Filho/e pela boa notícia/que ele fez ressoar em toda a terra//

    é ele que nos tira do sono/que leva à morte,/nos aguenta de pé/na vigilância e na expectativa//

    bendito sejas/pelo Espírito Santo e pela esperança/de que nos tornastes os depositários/neste tempo//

    está nos nossos corações e nas nossas mãos/a promessa do teu reino/para que acenda em nós/a chama da vigília//

    é por isso que somos solidários/do teu desígnio/ e do combate dos nossos irmãos//

    bendito sejas pela alegria/que nos preparas/e pela sua germinação/no presente das nossas vidas

    (In, dizer Deus, ao (des)abrigo do Nome, Difusora Bíblica, 1ª. edição, Junho de 1991)

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