domingo, 27 de janeiro de 2013

Homilia III Domingo do Tempo Comum

As leituras do Livro de Neemias e do Evangelho de São Lucas que acabámos de escutar oferecem-nos relatos que se prendem antes de mais com a materialidade do livro e da sua leitura.
No Livro de Neemias escutávamos como foi encontrado um livro, da lei do povo de Israel, que se desconhecia ou considerava perdido, e como a sua leitura foi um momento de profunda manifestação e adoração, por parte do povo, da palavra que nele se encontrava e escutava.
O Evangelho de São Lucas narra-nos a leitura que Jesus fez do livro do profeta Isaías aquando da primeira visita à sua terra de Nazaré e como Jesus assumiu para si a leitura que realizava.
Contudo, antes deste relato, a leitura que escutámos apresenta-nos o trabalho e os esforços do autor do texto evangélico para recolher as mais fidedignas informações relativamente à vida de Jesus, de modo a fortalecer a vida e a fé daquele para quem escreve, Teófilo.
Estamos assim, nestas três circunstâncias perante o processo da materialidade de uma história, de uma história que se redige e compõe, mas que ultrapassa a mera materialidade e composição.
Não é um simples texto, uma simples composição histórica ou legislativa, uma narração de acontecimentos, uma biografia, mas é um texto que transmite vida, que é vida e coloca os seus leitores face a um desafio de vida. O texto adquire assim uma dimensão transcendental e transversal entre o narrado, o acontecimento da história, e o leitor, aquele que se confronta a sua vida com o texto.
Neste sentido, aquilo que Jesus faz na sinagoga de Nazaré não é nada de extraordinário, mas é uma vez mais a realização da dinâmica da palavra divina plasmada num texto humano, da palavra que nos transcende mas também nos engloba e assimila, que se faz vida na leitura e na resposta à leitura.
Ao ler o texto de Isaías, Jesus reconhece-se nas palavras do profeta, reconhece que lhe são dirigidas e por isso não pode deixar de afirmar que naquele dia se cumpriam as mesmas palavras do profeta. Ele que tinha já experimentado a eleição do Pai aquando do baptismo no rio Jordão, que tinha já experimentado a força e o poder da sua acção salvadora junto dos homens, quando curava e expulsava os demónios, reconhece a promessa como actualidade, como actuando em si e por si.
É também este princípio, esta dinâmica que leva o Evangelista Lucas a procurar para Teófilo todas as informações acerca de Jesus, as informações mais fidedignas junto das testemunhas mais credenciadas. E este objectivo não é por razões científicas ou históricas, por uma curiosidade coscuvilheira, mas para que Teófilo possa viver a sua fé em Jesus Cristo de uma forma mais autêntica, mais fundamentada, vida vivida.
Afinal, o objectivo do Evangelho não é contar uma história, fazer uma recolha historiográfica, mas apontar acontecimentos e ensinamentos que conduzam à vida de Jesus, uma vida que nos alcança, que tem actualidade em nós e portanto deve transformar a nossa vida.
De alguma forma, somos convidados pelo Evangelho a proferir as mesmas palavras de Jesus, “hoje cumpriu-se esta passagem da Escritura em mim”, hoje estas palavras são vida para mim, transformam a minha vida, fazem-me tomar consciência da sua transcendência e eternidade.
E porque face a esta relação com a palavra podemos cair na sua idolatria, na leitura fundamentalista literalista, somos convidados, à luz da mesma palavra que escutámos na leitura do Livro de Neemias, a manter uma relação de equilíbrio entre a veneração do texto e a vida que não deixa de ser perfeitamente normal e quotidiana.
Assim, quando a leitura do livro da lei terminou e todos o puderam venerar e adorar, o povo foi convidado a regressar a suas casas e a comer e beber e a partilhar com aqueles que não tinham nada para comer ou beber. A leitura e a veneração da palavra do texto necessitavam transformar-se em vida, enquadrar o quotidiano em novas dimensões, tal como ainda hoje se torna necessário que aconteça.
E por isso nos reunimos para celebrar a Eucaristia e nela escutamos as várias leituras que a liturgia da Palavra nos oferece, porque necessitamos venerar a Palavra de Deus, que é vida, mas também porque necessitamos que ela se traduza nas nossas vidas, se faça vida em cada um de nós.
São Paulo na Carta aos Coríntios apresenta-nos como membros de um mesmo corpo, do corpo ressuscitado de Jesus Cristo que é a Igreja, e apresenta a relação de interdependência que existe entre todos. Face a esta relação podemos dizer que a palavra que escutamos e veneramos, que o texto da Sagrada Escritura, é o alimento que individual e comunitariamente nos conduz à realização da missão e nos mantém unidos num mesmo corpo transcendental.
Procuremos pois aproximar-nos da Palavra de Deus com a veneração e o respeito que lhe são devidos e acolhendo-a no nosso coração e na nossa inteligência transformá-la em vida na vida do nosso quotidiano.
 
Ilustração: “Os Quatro Evangelistas”, de Jacob Jordaens, Museu do Louvre, Paris.

2 comentários:

  1. Realmente a palavra de Deus transforma-se em vida quando a acolhemos no nosso coração e na nossa inteligência e, humildemente, aceitamos ser instrumentos dessa Palavra. I.T

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  2. Frei José Carlos,,

    A liturgia do III Domingo do Tempo e o texto da Homília que teceu são de grande profundidade. A importância da Sagrada Escritura, da Palavra de Deus, a sua tradução na nossa vida, o saber vivê-la na alegria, com equilíbrio, e o reconhecimento de que todos somos necessários, cada um na sua função, que a riqueza está na diversidade e a união faz a força nas nossas relações, a diferentes níveis. Permita-me que cite algumas das passagens do texto que me tocam.
    ...” aquilo que Jesus faz na sinagoga de Nazaré não é nada de extraordinário, mas é uma vez mais a realização da dinâmica da palavra divina plasmada num texto humano, da palavra que nos transcende mas também nos engloba e assimila, que se faz vida na leitura e na resposta à leitura.
    Ao ler o texto de Isaías, Jesus reconhece-se nas palavras do profeta, reconhece que lhe são dirigidas e por isso não pode deixar de afirmar que naquele dia se cumpriam as mesmas palavras do profeta.(…)
    (...)Afinal, o objectivo do Evangelho não é contar uma história, fazer uma recolha historiográfica, mas apontar acontecimentos e ensinamentos que conduzam à vida de Jesus, uma vida que nos alcança, que tem actualidade em nós e portanto deve transformar a nossa vida.(…)
    (…)reunimos para celebrar a Eucaristia e nela escutamos as várias leituras que a liturgia da Palavra nos oferece, porque necessitamos venerar a Palavra de Deus, que é vida, mas também porque necessitamos que ela se traduza nas nossas vidas, se faça vida em cada um de nós.
    São Paulo na Carta aos Coríntios apresenta-nos como membros de um mesmo corpo, do corpo ressuscitado de Jesus Cristo que é a Igreja, e apresenta a relação de interdependência que existe entre todos.”…
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda, ilustrada com beleza, pela importância que representa na reflexão sobre o nosso quotidiano, pela exortação que nos deixa …” Procuremos pois aproximar-nos da Palavra de Deus com a veneração e o respeito que lhe são devidos e acolhendo-a no nosso coração e na nossa inteligência transformá-la em vida na vida do nosso quotidiano.”
    Que o Senhor o ilumine, o guarde e abençoe.
    Votos de uma boa semana.
    Bom descanso.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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